EUA E OS DESAFIOS DO IMPÉRIO NO SÉCULO XXI. Por Mariana Schlickmann e Paulino Cardoso

SÉRIE: IMPERIOS DECADENTES 

TEMA: EUA E OS DESAFIOS DO IMPÉRIO NO SÉCULO XXI 

Por Mariana Schlickmann e Paulino Cardoso 

Mundo Multipolar, 26 de junho de 2021 

 

No presente texto finalizamos a trilogia dos Impérios decadentes. Inicialmente, refletimos sobre Inglaterra e Espanha e paramos no meio do caminho pois não havia como não falar do episódio mais recente do genocídio palestino perpetrado por Israel. 

Neste texto abordamos duas questões. Primeira: Como os EUA se tornaram um império hegemônico? O Embaixador Samuel Pinheiro Guimaraes, Secretário Geral do Itamaraty e Ministro de Assuntos Estratégicos do Governo Luís Inácio Lula da Silva que escreveu dois artigos importantes sobre o tema no Jornal Brasil de Fato sobre o Sistema Internacional e o Império, nos ajudou a responder esta pergunta. Segunda: quais seriam os desafios do império e quais os indicativos do fim da hegemonia estadunidense? Analistas geopolíticos internacionais como Pepe Escobar, Andrew Korybko, Alfred W. McCoy, Michael Hudson e o embaixador Samuel Pinheiro Guimaraes embasaram nossa argumentação neste segundo questionamento.  

 



 

 Mas afinal, o que é hegemonia nas relações internacionais? 

 

Segundo Pinheiro Guimaraes, A hegemonia em nível mundial é a capacidade de elaborar, divulgar e fazer aceitar pela maioria dos Estados uma visão do mundo em que o país hegemônico é o centro; de organizar a produção, o comércio e as finanças mundiais de forma a captar para a sede do Império uma parcela maior do Produto Mundial para uso de sua população, e muito em especial de suas classes hegemônicas e de seus altos funcionários; a capacidade de impor a “agenda” da política internacional; de ter a força para punir os governos das “Províncias” do Império que se recusem a aceitar ou se desviem das regras (informais) de seu funcionamento. 

  O atual Império, de que falamos aqui, é o Império estadunidense, que começou a ser construído durante e após a Segunda Guerra Mundial e que permanece em transformação diária na estratégia americana de manter sua hegemonia. 

Ao final da Segunda Guerra os Estados Unidos exerciam uma hegemonia militar absoluta, cujo símbolo maior era o monopólio nuclear [a União Soviética só explodiu seu primeiro artefato quatro anos depois]; uma hegemonia política, demonstrada pela capacidade de organizar o sistema político mundial e de reorganizar o sistema político doméstico dos inimigos; uma hegemonia econômica e tecnológica, por terem dobrado o seu Produto Interno Bruto durante a guerra e realizado enorme avanço tecnológico [o PIB estadunidense respondia por 50% da Economia Mundial]; uma ampla e universal influência ideológica, em competição com a visão comunista, em que o American Way of Life, otimista, alegre e próspero, havia vencido a sombria visão nazista da sociedade.  

No exercício dessa hegemonia global, os Estados Unidos retomaram o projeto do Presidente Woodrow Wilson de criar uma organização de Estados nacionais, a Liga das Nações, porém com dispositivos que garantissem a perpetuação de sua hegemonia. A Liga das nações acabou se transformando na ONU. 

 Segundo Samuel Pinheiro Guimaraes, os objetivos dos Estados Unidos no pós-guerra eram:


  • 1) obter a adesão da União Soviética, a segunda Potência vencedora, à ONU; 

  • 2) obter a adesão dos principais Aliados, Grã-Bretanha e França, ao sistema de poder consagrado na Carta da ONU; 

  • 3) obter a adesão de todos os Estados à Organização das Nações Unidas; 

  • 4) promover a desintegração dos impérios coloniais, em especial britânico e francês, através da ONU e de sua IV Comissão, de descolonização; 

  • 5) conferir aos Estados Unidos o poder de impedir qualquer ação político-militar da ONU e manter sua independência para agir unilateralmente; 

  • 6manter suas tropas estacionadas na Europa e na Ásia (ainda hoje eles possuem mais de 800 bases militares espalhadas pelo mundo). 

  • 7desarmar permanentemente os seus maiores competidores, a Alemanha e o Japão, através de suas Constituições nacionais; 

  • 8) impedir a difusão do conhecimento da tecnologia de fabricação da arma nuclear; 

  • 9)criar um sistema financeiro internacional com o dólar como moeda de reserva e de uso geral nas transações internacionais; 

  • 10) criar um sistema comercial mundial com base na cláusula de nação mais favorecida, no tratamento nacional, nas tarifas e em sua consolidação; 

  • 11) criar um sistema de enquadramento, de monitoramento e de fiscalização das economias nacionais através de um organismo multilateral “isento” [FMI, Banco Mundial]; 

  • 12) reconstruir as economias europeias para fazer face à URSS e à influência política soviética na Europa Ocidental; 

  • 13) garantir o acesso aos meios de comunicação de todos os países para poder participar da construção do imaginário social, político e econômico em suas sociedades e Estados (por isso consumimos seus filmes, suas músicas, sua culinária, seu vocabulário, sua cultura). 

 

Resumindo, eles fizeram uma espécie de armadilha com a criação da ONU, na qual eles ditaram todas as regras, garantiram que todos os países se submetessem a elas, mas eles mesmos não as cumprem. 

Diante desses desafios, não é possível anotar todos os logros do Império, mas essas foram algumas de suas importantes vitórias políticas, econômicas, militares e ideológicas alcançadas a partir da Segunda Guerra Mundial. 


  • 1) a dissolução dos Impérios Britânico e francês, a partir de 1957;

  • 2) a vitória sobre o desafio cubano a partir de 1960, através da Aliança para o Progresso e da implantação de ditaduras militares “modernizadoras”; 

  • 3) a aceitação por todos os países de seu próprio desarmamento nuclear e de conferir aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança o oligopólio nuclear com o TNP, em 1968; 

  • 4) a abertura da China às megacorporações multinacionais, a partir de 1979; 

  • 5) a retirada das tropas soviéticas da Europa Oriental, em 1985; 

  • 6) a desintegração territorial da União Soviética, em 1991; 

  • 7) a adesão da Rússia ao capitalismo, através do Programa de Choque do FMI, em 1995; 

  • 8) o ingresso da China e da Rússia no FMI, no Banco Mundial e na OMC; 

  • 9) a adesão ao capitalismo e à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) dos ex comunistas países da Europa Orienta e a ampliação de sua capacidade de agir além da zona definida no Tratado; 

  • 10) a participação do Vietnã nas negociações da Transpacific Partnership – TPP (2015) e a abertura de sua economia às megaempresas americanas. 

 

Desse modo, dificilmente o Império estadunidense, cujo poder se encontra no seu complexo industrial-militar; em sua rede mundial de megaempresas; em sua posição nas organizações internacionais; em suas alianças com as classes hegemônicas de suas Províncias; em sua disposição de fazer uso da força (de que o assassinato do General iraniano Soleimani foi um episódio) que esse país, assistirá, resignada e tranquilamente, sua própria decadência e substituição por um mundo multipolar que emergiria de uma nova solidariedade humana criada pela Pandemia ou por processo histórico. O fim da Pandemia se dará com a propagação da vacina e a tênue solidariedade se dissolverá e não se deve comparar o que ocorreu com impérios no passado com a situação especial dos Estados Unidos.  


 

QUAIS SERIAM OS DESAFIOS DO IMPÉRIO E QUAIS OS INDICADORES DO FIM DA HEGEMONIA ESTADUNIDENSE? 

 

Para esta segunda questão iremos contar com o brilhante Embaixador Samuel Pinheiro Guimaraes, acompanhado de analistas geopolíticos internacionais como Pepe Escobar, Andrew Korybko, Alfred W. McCoy, Michael Hudson entre outros. 

Como sabemos, o Império estadunidense desenvolve uma estratégia global cujo objetivo é manter sua hegemonia, sua capacidade de se apropriar de uma parcela maior do Produto Mundial, em benefício de suas classes hegemônicas, através de um sistema econômico, político e militar que organizou e lidera. 

Lembramos que a estratégia do Império em relação a suas Províncias é distinta de sua estratégia em relação aos Estados Adversários, China e Rússia. No caso das províncias, como Brasil, França, República Tcheca, Coréia do Sul ou Nigéria, a estratégia de preservação da hegemonia política em relação às Províncias utiliza como instrumentos o treinamento de elites civis e possíveis futuros líderes, organização de seminários e programas para jornalistas [economistas, juízes, procuradores, policiais]; defesa de liberdade de ação para as ONGs; defesa da liberdade de acesso à Internet; financiamento de organizações políticas [lembram do MBL e o Instituto Millenium?]; a prática do lawfare e a cooperação com juízes das Províncias [que permitiram a destruição da indústria de construção pesada do Brasil e a perseguição judicial a diferentes lideranças populares em toda América Latina, sintetizada na luta contra a corrupção. Entre outros. 

Como afirma Alfred McCoy, os EUA são hegemônicos a tanto tempo, que como a Inglaterra dos anos 1950, se esmeram em uma política imperial na relação com os países do Sul Global, esmagando opositores, disseminando guerras e sanções unilaterais. A famosa política de soma zero.  

Enquanto China e Rússia focavam no seu desenvolvimento, os EUA e seus aliados desde os anos 1980, reduziram o investimento em Educação, precarizaram a força de trabalho com a perseguição ao sindicalismo e retirada de direitos trabalhistas e desmontaram seus sistemas de Bem-Estar Social. A expectativa de vida nos Estados Unidos já estava caindo desde 2017, e diminui um ano completo com a pandemia. A qualidade de vida também vem diminuindo, assim como o poder de compra das famílias, que têm menos oportunidades de mudar de classe social hoje do que há 50 anos, o que coloca os EUA hoje entre as piores desigualdades sociais do mundo. 

Toda essa piora na qualidade de vida e retirada de investimentos levou a uma perda significativa na capacidade de inovação, como o desenvolvimento de Inteligência Artificial, Internet de Alta Velocidade e manutenção do arsenal nuclear e de produção de mísseis hipersónicos, que poderiam ajudar a o país a crescer de forma orgânica. 

Eles pregaram com ainda mais força após o fim da União Soviética, a estratégia de Globalização, ou re-europeizaçao do Mundo. Isso significou a transferência de empresas dos EUA, para os mais diferentes países como China e Índia, Indonésia, Paquistão, promovendo uma gigantesca desindustrialização nos países centrais, com exceção da Alemanha, e com ela a perdas de empregos estáveis e de qualidade e levando também a uma crescente financeirização da Economia. 

Somasse a esta cereja do bolo os trilhões gastos na chamada “Guerra contra terror”, que em duas décadas esvaziou os cofres estadunidenses, mas não conseguiu atingir seu objetivo. Qual era o objetivo? Sabemos que jamais foi acabar com o que chamaram de terrorismo, mas sim ter controle sobre o Oriente Médio e seu petróleo. 

Diante do acosso do Império, Rússia e China, para desespero dos ocidentais desde o Século XXI, estreitam uma parceira estratégica abrangente com vista a reduzir suas próprias vulnerabilidades. Entre elas: defesa do Direito Internacional centralizado na ONU e na Carta das Nações Unidas, ênfase nos órgãos multilaterais como Organização Mundial de Saúde, Organização Mundial de Comercio. Outro aspecto muito importante é que buscam reforçar seus laços recíprocos de cooperação, em especial com os Estados vizinhos e a Iniciativa das Novas Rotas da Seda, Organização de Cooperação Econômica de Xangai, o Acordo de Livre Comercio Asiático, o RECPT. Tudo isto, baseado em uma política de ganha-ganha que está solidificando   

Ao contrário do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, instrumentos de monitoramento e controle das economias do Sul Global, China por meio do Banco dos BRICS, do Banco Asiático de Infraestrutura, entre outras, tem contribuído para oferecer melhores condições desenvolvimento aos países em desenvolvimento. 

A participação da Rússia na “Guerra contra o Terror” na Síria, foi decisiva para, em parceria com o Irã, a destruição do Estado Islâmico na Ásia Ocidental, e a consequente redução da presença e seus aliados ocidentais do Iraque, Síria e Afeganistão.  

Como Afirma Chris Hedge, “a inaptidão imperial é comparada com a inaptidão doméstica. O colapso do bom governo em casa, com os sistemas legislativo, executivo e judiciário todos tomados pelo poder corporativo, garante que os incompetentes e corruptos, aqueles dedicados não ao interesse nacional, mas ao inchaço dos lucros da elite oligárquica, levem o país a um beco sem saída. [...] Como pensar em Allen Dulles, Dick Cheney, George W. Bush, Donald Trump ou o infeliz Joe Biden? Embora sua vacuidade intelectual e moral seja muitas vezes sombriamente divertida, é assassina e selvagem quando dirigida às suas vítimas. 

Após o America First, do governo Trump, com seu unilateralismo, mas que teve o mérito de identificar a China como verdadeiro adversário do Império hegemônico, Joe Biden, propõe o America is Back, ou seja, o retorno da diplomacia no trato dos problemas internacionais. Mas não se enganem, pois não se trata de um retorno ao multilateralismo focado na centralidade da ONU e da Carta das Nações, associada ao respeito à soberania dos povos e na não ingerência nos assuntos internos dos Estado membros. 

Pelo contrário, trata-se reconstruir as relações com os aliados ocidentais, revigorando G7, que um dia foi o grupo dos países mais industrializados, mas não é mais, a OTAN, organização do Tratado do Atlântico Norte, o QADS, a aliança de defesa do Indo Pacífico composta por Australia, Japão, Índia e Estados Unidos, ou os Cinco Olhos, o sistema de vigilância que une Australia, Nova Zelândia, Canadá, Grã-Bretanha e EUA. 

O objetivo é fortalecer esses blocos para agir a margem das Nações Unidas, naquela vibe que a gente já comentou de criar as regras, impô-las ao restante do mundo, mas não as seguir. Serguei Lavrov, chanceler da Federação Russa e Wang Ji, ministro das relações exteriores da República Popular da China vem denunciando essas tentativas de agir a margem das Nações Unidas. 

Porém, o que o Império não se dá conta é que grupos como G7, logo após a II Grande Guerra, controlava dois terços da economia mundial. Hoje é o contrário e caminha decisivamente para irrelevância.  

Lembrando que alguns membros como a Alemanha da Angela Merkel e a França de Emanuel Macron, ainda estão interessados em uma Europa capaz de exercer uma autonomia estratégica e fundada em objetivos de longo prazo. Por isso, buscam (mesmo com os EUA em seu cangote tentando sabotar) independência energética por meios do acesso ao gás russo e produzir mercadorias de alto valor agregado para uma classe média chinesa de 800 milhões de pessoas. 

Ao mesmo tempo, Joe Biden para fortalecer os EUA, anunciou 6 trilhões de dólares em investimento em infraestrutura. O mundo pergunta de onde retirará os recursos? Afinal os EUA são a nação mais endividada do mundo, devendo cerca de 29 trilhões de dólares, três trilhões apenas com a China. Como ele vai fazer isso? Vai sair por aí imprimindo moeda sem lastro?  

O que nos remete a um grande problema. O poder estadunidense não se baseia na condição de ser a manufatura do mundo, mas de ser um gigantesco cassino financeiro, e no domínio do dólar como meio de transações comerciais. Por isso, usa sanções econômicas unilaterais que permitem aos EUA e seus aliados a se apropriar de fundos do Irã, Venezuela, Cuba, entre outros como uma forma de atacar seus inimigos.  

O problema, como nos lembram Pepe Esccobar e Michael Hudson, é que esta prática já foi identificada pelos líderes do Sul Global, que tem estimulado a substituição do dólar como moeda internacional. Por exemplo, a Rússia pretende eliminar todas as verdinhas do seu fundo soberano. Nas relações comerciais entre China e Rússia, metade já transacionada em Yuan, a moeda chinesa e o BRICS um dia sonhou em ter sua própria moeda. 

Buscamos aqui, mostrar que os pilares que os transformaram e os mantiveram enquanto um império, estão ruindo, e alguns já ruíram inclusive. Mas isso não significa que eles desistirão facilmente do seu posto, ou que se tornarão irrelevantes. Pelo contrário. Eles têm feito de tudo, desesperadamente, para se manter enquanto o único polo de poder no mundo, mas a mudança já é inevitável.  

Pelo seu tamanho e pelo que representam, os Estados Unidos sempre serão um país importante, mas quando antes aceitarem e procurarem se encaixar de forma harmônica no mundo Multipolar que está emergindo, melhor, pois todo mundo irá ganhar. E sim, a palavra é aceitar, pois essa nova Ordem Internacional defende uma humanidade de futuro compartilhado, na qual os povos possam exercer livremente a soberania sobre seus territórios, e eles terão que se acostumar a não ser mais o poder unipolar do mundo. 

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