terça-feira, 27 de junho de 2017

 

EUA e Rússia à beira do abismo na Síria Curdos sírios, os que mais perdem

EUA e Rússia à beira do abismo na SíriaCurdos sírios, os que mais perdem
21/6/2017, Elijah J. Magnier Blog

A batalha entre aliados dos EUA e aliados da Rússia está em flagrante escalada no nordeste da Síria, criando risco real de que as superpotências deslizem para confronto direto, para protegerem cada um os próprios interesses. Mas ao final, Washington absolutamente não vencerá na Síria, e seus aliados – liderados pelos curdos sírios sob a bandeira de "Forças Democráticas Sírias, FDS [ing. Syrian Democratic Forces, SDF) – pagarão o mais alto preço.

Claro que os falcões de Washington acreditam que possam provocar ou intimidar Moscou na Síria: EUA já bombardearam o aeroporto militar sírio de Shyay’rat onde havia forças russas estacionadas, com outras unidades sírias. Além disso, jatos de Washington bombardearam aliados russos já três vezes consecutivas, perto do posto de fronteira entre Síria e Iraque, em Al-Tanf. E, por último, mas não menos importante, recentemente a Força Aérea dos EUA derrubou um droneiraniano e um jato sírio Su-22 que tinham por alvo a área do grupo terrorista ISIS, quando forças curdas apoiadas pelos EUA avançavam sobre a cidade de Rusafa na parte rural de Raqqa.

Todas essas ações militares hostis dos EUA foram executadas ilegalmente em território sírio e contra o Exército Árabe Sírio, não contra grupos terroristas. Os EUA não têm jurisdição legal nem qualquer tipo de mandado ou consenso judicial para atacar o Exército Árabe Sírio em território sírio, especialmente no caso de o objetivo dos EUA ser, como na verdade é, apoiar a divisão de um país independente, não combater grupos terroristas. Só tem a ver com a influência e o controle de Washington naquela parte do território sírio, necessários no nordeste da Síria para ocupação sem qualquer legítimo apoio internacional, com vistas a estabelecer aeroportos militares e uma base em Bilad al-Sham.

Obviamente, Washington dá pouca atenção à possível reação de Moscou contra ações militares dos EUA contra aliados dos russos na Síria, enquanto os EUA avançam para ocupar território sírio. Mas a Rússia está respondendo, bombardeando aliados de Washington na Síria. É altamente provável que jatos dos EUA bombardeiem acidentalmente forças russas unidas a grupos sírios; e claro que jatos russos podem bombardear Forças Especiais dos EUA infiltradas entre os seus 'representantes' curdos e que operam no norte da Síria. Exatamente aí a situação pode muito rapidamente escapar de qualquer controle e o prestígio das superpotências estará comprometido se qualquer dos lados forçar reação não desejada, mas praticamente inevitável. E isso empurrará o Oriente Médio para outra dimensão de destruição, que pode afetar todo o mundo.

O principal aliado da Rússia na Síria, o Irã, está fazendo subir o nível de tensão em relação às forças dos EUA em Bilad al-Sham:

– Já injetaram milhares de novos soldados para recuperar os 55 mil quilômetros quadrados da Estepe (Badiya) Síria, e conseguiram derrotar os 'representantes' dos EUA (Usud al-Sharqiyah) e o ISIS no semideserto do sudeste da Síria: até esse momento mais de 25 mil quilômetros quadrados já foram recuperados, da província Suwaida até o sul da fronteira de al-Tanaf.

– O Irã infiltrou soldados acima de Tanaf (onde estão estabelecidas forças dos EUA) para fechar o caminho nordeste para Deir al-Zour, estabelecendo assim nova linha de demarcação e isolando os EUA em al-Tanaf.

– O Irã coordenou com o Iraque o avanço das forças de segurança iraquianas em al-Tanaf, a partir do lado iraquiano da fronteira, para bloquear forças dos EUA. Tropas iraquianas movem-se para o norte, de al-Tanaf na direção de al-Qaem para encontrar o Exército Árabe Sírio e aliados ao longo da fronteira.

– O Irã lançou seus mísseis balísticos com alcance de 700 km, os “Zulfuqar” (nome da espada do primo do profeta Maomé, quarto califa e primeiro imã xiita Ali Bin Abi Taleb), mas também tem mandado múltiplas mensagens domésticas (vingança contra o duplo ataque terrorista) e mensagens internacionais para os EUA e aliados no Oriente Médio, apenas 24 horas depois de os EUA lançarem leis de restrição contra o programa de mísseis iranianos.

Teerã absolutamente não dá qualquer atenção às 'decisões' dos EUA e diz claramente aos EUA que elas não serão tomadas em consideração; que o braço do Irã é longo e pode atacar em todo o Oriente Médio (Israel, Arábia Saudita, bases militares dos EUA no Oriente Médio), e que o Irã não tem qualquer preocupação com as regras supostas convencionais. Que o país pode atacar qualquer alvo, quando desejar e onde desejar; o Irã lançou mísseis do Curdistão-Irã, a mesma província de onde os curdos iranianos do ISIS lançaram seu duplo ataque terrorista esse mês, contra instituições iranianas.

O Irã também lançou seus mísseis contra o ISIS na cidade de Deir Al-Zour (sitiada há 30 meses, e onde estão 100 mil-150 mil civis) e em al-Mayadeen para enfatizar a importância da Síria e da cidade de Deir Al-Zour (jatos dos EUA e aliados contribuíram para quebrar a linha de defesa do Exército Árabe Sírio, quando atacaram suas posições, ano passado, nas montanhas Tharda acima do aeroporto de Deir Al-Zour). Esse específico bombardeio por forças dos EUA durou várias horas e matou mais de 100 soldados e oficiais do Exército Árabe Sírio em Tharda e deu vantagem aos terroristas do ISIS, ao lhes permitir avançar para dentro do perímetro do aeroporto (única via aérea de suprimento da cidade sitiada) e permitindo que o ISIS dividisse a cidade em duas partes. A mensagem do Irã é bem clara: não permitirá que Deir al-Zour caia e fará qualquer coisa, com os próprios aliados, para romper o sítio dessa cidade nos próximos meses.

Na sequência da escalada na Síria, a Rússia está mandando mais mísseis de Defesa para a Síria. Damasco não hesitará em bombardear jatos da 'coalizão' norte-americana, especialmente porque Moscou mantém suas forças em terra e tem a missão de protegê-las contra qualquer reação dos EUA. Moscou pôs fim à cooperação com os EUA na Síria, suspendendo temporariamente a linha de desconflitação (que se espera que seja restabelecida em breve) e lançou um alerta bem claro, de que a Rússia tomará como alvo qualquer objeto que voe a oeste do Rio Eufrates.

Enquanto tudo isso se desenrola, forças iraquianas movem-se ao longo da fronteira com a Síria, informando às forças dos EUA que o Iraque está cooperando com Damasco e nada tem a ver com qualquer projeto que os EUA tenham para a região. Depois que o ISIS estiver derrotado, Bagdá não aceitará a presença de qualquer força dos EUA em seu território. Os EUA manterão um contrato de treinamento com o governo do Iraque, não influenciarão nas decisões e no relacionamento do país com seus vizinhos, inclusive Síria e Irã.

Todas as forças em solo – exceto os curdos e alguns remanescentes de forças da oposição síria armada – estarão trabalhando contra os EUA na Síria, a começar pelo ISIS (como insurgentes depois que a guerra terminar na Síria e no Iraque), Al-Qaeda (jurou atacar os EUA em todos os cantos do mundo), Turquia (que recusa o apoio que os EUA dão à autonomia dos curdos na Síria), Damasco (atacará os curdos depois que o ISIS for expulso do território) e aliados da Síria (Irã, Hezbollah e milícias iraquianas na Síria), todos esses estão esperando o momento adequado para atacar forças dos EUA, nas linhas do que o Hezbollah fez em Beirute (quando explodiu o quartel-general dos Marines e a Embaixada dos EUA no Líbano, nos anos 80s).

Significa que os EUA fizeram incontáveis inimigos e poucos amigos, que se verão abandonados, porque não restará alternativa a Washington que não seja abandonar também os amigos, mais cedo ou mais tarde. Sabe-se bem que os EUA não têm amigos, só parceiros de negócios e interesses comuns. Quando cessarem os interesses dos EUA na Síria, os soldados não terão alternativa além de deixar o país.

Os curdos sírios seculares erraram ao adotar política diferente, que jamais foi adotada pelos curdos iraquianos. Declararam hostilidade a Damasco e aliaram-se aos EUA e aliados na região (a Arábia Saudita wahhabista salafista). Os curdos adoraram posição anti-Irã e aceitaram que seus militantes se convertessem em lenha a ser queimada para recuperar a cidade de Raqqa, de maioria árabe, sofrendo baixas consideráveis só para promover um plano dos EUA de fixar bases militares no nordeste da Síria.

Esses curdos serão, no futuro, os principais perdedores: as forças de Damasco e aliados estão recuperando territórios pelo lado curdo e avançando na área rural de Raqqa, para impedir que milícias 'representantes' dos EUA expandam-se e ocupem o campo de petróleo a oeste do Rio Eufrates.

Os curdos serão "O" inimigo, depois de o ISIS ser derrotado. Durante os longos anos da guerra síria, os curdos permaneceram como aliados silenciosos e parte da Síria. Damasco estava pronta para discutir uma Federação Curda, depois do fim da guerra, desde que permanecesse como parte da Síria. Hoje, os curdos aceitaram a função de forças 'representantes' dos EUA, perseguindo ainda um sonho de federação autônoma que foi esmagada primeiro pela Turquia (dividiu Rojava em dois, quando ocupava o corredor de Jarablus a al-Bab), e que hoje será também atacado por Damasco.

A Síria jamais aceitará uma federação curda que garanta proteção para os EUA como força ocupante. De fato, a hostilidade contra soldados de Washington já alcançou níveis sem precedentes no Levante e na Mesopotâmia, e mostra que a decisão dos curdos, de se alinharem aos EUA (e à Arábia Saudita), não passa de estratégia suicidária, inacreditavelmente ingênua.

Vê-se assim claramente que os EUA só terão inimigos no Levante e terminarão por também perder até os seus amigos temporários curdos.

Só a Rússia e seus aliados, que trabalham com determinação, consistência e força consideráveis na Síria, lá estarão, no final como força vitoriosa.

domingo, 25 de junho de 2017

 

EUA enfrentam revés histórico no Oriente Médio


23/6/2017, MK Bhadrakumar, Indian Punchline

O bloco dos quatro países árabes puxados pela Arábia Saudita que impôs um embargo contra o Qatar dia 5/6 apresentou afinal sua carta de exigências. 
Despacho da AP [leia aqui], lista as 13 demandas. As que mais chamam a atenção incluem que Doha reduza os laços com o Irã, que rompa relações com o Hezbollah e a Fraternidade Muçulmana, que feche uma base militar turca que há no país e que extinga a rede estatal de comunicação Al Jazeera e vários outros veículos.

Interessante, o Qatar também deve "aceitar auditorias mensais durante o primeiro ano depois de aceitar todas as demandas; depois uma por trimestre, durante o segundo ano. Pelos seguintes dez anos, o Qatar será monitorado anualmente, para verificar o exato cumprimento das demandas." Tudo isso significa que só a capitulação incondicional, abjeta do Qatar satisfará seus 'grandes irmãos' – nada menos. E há também um cronograma a seguir – dentro dos próximos 10 dias –, ou todas as demandas perdem a validade.

Para mim, o Qatar verá rapidamente que essa 'ação' não passa de mal disfarçado movimento para 'mudança de regime'. A resposta do regime só pode ser uma: que aqueles figurões árabes se enforquem.

O que acontece a seguir? Dito em poucas palavras, o Oriente Médio Muçulmano (sunita) está à beira de um racha histórico, que terão consequências profundas para a segurança regional e internacional.

Que ninguém se engane: esse mais recente desenvolvimento é uma bofetada na cara do governo Trump. Só na 3ª-feira passada, o Departamento de Estado dos EUA alertou a Arábia Saudita para que ponha fim ao impasse sem qualquer demora, antes que a intervenção direta dos EUA seja necessária, criticando a posição adotada por Riad (na qual todos veem a marca do novo Príncipe Coroado Mohammed bin Salman), e mostrando simpatia ao Qatar (onde está instalado o Comando Central dos EUA). Curiosamente, o porta-voz dos EUA também aludiu ao envolvimento passado da Arábia Saudita com terroristas "seja mediante financiamento ao terror ou outros meios".

Evidentemente, o orgulho saudita foi cutucado, e Riad levou a sério a censura dos norte-americanos. Sem dúvida, aquelas demandas são mostra de desafio também a Washington. Tudo agora provavelmente tomará feições de crise prolongada, que seriamente comprometerá as estratégias regionais dos EUA – a menos, claro, que o Qatar ceda completamente – e enfraqueça a guerra que faz contra o ISIS.

De fato, a Turquia levará muitíssimo a sério a demanda saudita para que sua chamada base militar em Doha seja fechada sem cerimônias. O presidente Recep Erdogan verá essa demanda como afronta intolerável ao legado otomano. A 
Voz da América noticiou na 5ª-feira que a Turquia está transportando grande quantidade de alimento e soldados para o Qatar.

Obviamente, o xis da questão é que o vírus da Primavera Árabe está hibernando no Qatar e ameaça converter-se em epidemia a qualquer momento, ameaçando os regimes autocráticos no Oriente Médio. Só Turquia, Irã e Israel são imunes ao vírus do empoderamento democrático. Evidentemente, Al Jazeera e a Fraternidade Muçulmana estão enlouquecendo os xeiques na Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrain e ameaçam a ditadura militar no Egito.

A credibilidade dos EUA na 'rua árabe' está agora irremediavelmente arranhada. Para o presidente Donald Trump, tudo isso se traduz em grave embaraço político doméstico. (
Bloomberg) Falta saber como os EUA conseguirão pagar para manter por muito tempo a própria posição beligerante na Síria e Iraque, sem qualquer aliado regional no mundo árabe.

A estratégia de contenção do governo Trump contra o Irã parece destinada a colapsar antes mesmo de ser lançada, e o projeto que é a menina dos olhos de Trump, de criar uma "OTAN árabe" já não passa de piada macabra. Algum dia os EUA conseguirão restaurar sua hegemonia sobre o Oriente Médio Muçulmano? Duvido. Uma grande fatia da história moderna da hegemonia ocidental sobre os árabes está rachando e começa a flutuar em direção ao horizonte. Para garantir, os russos estão chegando!

Agradecimento aos anônimos tradutores da Vila Vodoo.
Agradecimento

 

Crise no Qatar: Origens e consequências

Crise no Qatar: Origens e consequências
22/6/2017, SouthFront

A crise em curso que cerca o Qatar é o mais grave conflito surgido entre estados árabes do Golfo desde o fim da Guerra Fria. Enquanto esses petromilionários e autocráticos membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) historicamente sempre foram na maioria aliados de conveniência unidos por medos partilhados (da URSS, de Saddam Hussein, do Irã, etc.), a desconfiança nunca antes cresceu entre eles, a ponto de algum deles exigir nada menos que rendição incondicional de outro 'colega' de OPEP. Vários traços interessantes dessa crise imediatamente saltam aos olhos.

Primeiro, o rompimento de relações diplomáticas, pela Arábia Saudita e várias outras potências regionais, inclusive o Egito, privando o Qatar da licença para usar rotas terrestres e aéreas de transporte que cruzem território da Arábia Saudita e de outros estados do Golfo, inclusive o Egito, aconteceu de repente, sem qualquer aviso. Não há disputas que se vejam entre o Qatar e qualquer de seus vizinhos, nem qualquer grande movimento recente de provocação. Tudo isso sugere que o movimento foi premeditado e planejado pela Arábia Saudita e parceiros.

Embora ainda não se veja claramente qual o papel dos EUA na crise, é extremamente improvável que Arábia Saudita tenha tomado qualquer medida tão drástica sem coordenação com os EUA, sobretudo porque o movimento surge literalmente nos calcanhares da visita muito noticiada de Trump aos sauditas. Embora se tenha mantido calado de início, o presidente Trump depois se serviu do Twitter para apoiar os sauditas contra o Qatar, apesar de os EUA ainda manterem presença militar importante naquele país.

As acusações feitas contra o Qatar são extremamente graves, nada menos que isso. Ambos os líderes de EUA e Arábia Saudita acusaram o Qatar de todos os piores crimes disponíveis, dentre os quais, por exemplo, apoiar o extremismo islamista violento. Trump chegou a dizer que uma mudança de políticas do Qatar seria grande passo para resolver o problema do terrorismo.

A natureza da crise sugere que ali se manifestem tensões que há muito tempo fervilhavam sob a superfície, mas agora afinal apareceram à tona. O confronto entre sauditas e qataris, e os movimentos da facção pró-sauditas, sugerem que aí operem vários fatores.

Um desses fatores, dentre os nada triviais, é a queda, nos anos recentes, nos preços da energia. As caras guerras da Arábia Saudita na Síria e no Iêmen só agravam esse problema. Dado que a principal linha de negócios do Qatar é o gás natural, cuja produção está fora da 'supervisão' pela OPEP, é possível que a Arábia Saudita esteja tentando forçar o Qatar, cujo PIB per-capita é o mais alto do mundo, a partilhar parte dessa riqueza com a falida monarquia saudita.

Esse passo dramático provavelmente não seria necessário, se, nesse momento, as ambições de sauditas e qataris na Síria já se tivessem realizado. O objetivo afinal de contas era construir gasodutos e oleodutos que atravessariam território sírio, e também encampar os campos de petróleo da Síria usando oISIS como 'representante local', sobretudo e sempre com o apoio tácito do governo Obama. Apesar de o resultado da guerra na Síria ainda não estar decidido, já é perfeitamente claro que falharam os esforços de sauditas e qataris para expandir a própria riqueza à custa da Síria.

Os sauditas também estão tentando estabelecer o próprio domínio político na região, como parte do conceito "OTAN sunita". A política externa independente do Qatar, que sempre ignorou e até minou os objetivos sauditas na Síria e na Líbia, foi obviamente um obstáculo para que aqueles objetivos fossem alcançados. Sobretudo, a independência do Qatar também parece ser a razão pela qual países como Egito e Israel estão hoje apoiando os movimentos sauditas. O Qatar é um dos principais patrocinadores da Fraternidade Muçulmana e do Hamás, que são os principais agentes irritantes dos mesmos Egito e Israel respectivamente.

Outra das principais manifestações da independência dos qataris foi sua política para o Irã, que também está em clara oposição à linha dura dos sauditas. Dado que a "OTAN sunita" visa diretamente o Irã, se a Arábia Saudita conseguir esmagar a independência do Qatar, ela se terá inquestionavelmente plantado como poder político dominante dentro da Península Árabe. O violento, duro ataque ao Qatar, para humilhar e disciplinar a dissidência, também serve como alerta de longo prazo a qualquer outro poder menor no Golfo que pense em ter e defender qualquer política externa independente do que decida a Arábia Saudita.

A importância do Irã para o conflito sauditas-qataris tem sido claramente demonstrada pela disposição do Irã para fornecer alimento ao Qatar, contra o bloqueio saudita; e pelo ataque terrorista em Teerã, que autoridades iranianas atribuíram aos sauditas. Teerã também abriu seu espaço aéreo aos aviões da Qatar Airways e expandiu esforços não oficiais para atrair Doha para sua própria esfera de influência.

Com isso em mente, a recente visita de Trump à Arábia Saudita, que culminou na cerimônia bizarra da "esfera luminosa", adquire novo significado. Embora ainda não se saiba quanto de 'autonomia' Washington está dando a Riad em seus contatos com Doha, nem quanto de coordenação e comunicação há entre os dois poderes, o comportamento de Trump na Arábia Saudita visou, provavelmente, a mandar um 'aviso' de que a Arábia Saudita conta com plena confiança dos EUA, embora, evidentemente, o Qatar não tenha tomado conhecimento do 'aviso'. Se a ação saudita resultar em o Qatar abandonar a Fraternidade Muçulmana e o Hamás, ajudará os EUA a recompor parte do seu prestígio político na região, arrastando Israel e, especialmente, o Egito, para mais próximo dos EUA.

A esterilização do Qatar promete também, além do mais, forçar as guerras, não só na Síria, mas também na Líbia, a rápida conclusão, pela eliminação de ator significativo que persegue objetivo independente. Por último, mas não menos importante, o Qatar também tem melhores relações que a Arábia Saudita com ambas, Rússia e Turquia, o que certamente desperta medos adicionais em Washington de que a Rússia esteja próxima de tomar o lugar dos EUA, como potência externa mais influente no Oriente Médio.

A emergência de uma constelação de Rússia-Irã-Turquia-Qatar como resultado da diplomacia russa e das próprias ambições regionais da Turquia é cenário de total pesadelo para ambas, Riad e Washington.

Ainda não se sabe claramente se o governo Trump forçou a Arábia Saudita a assumir o atual curso, ou se Trump ficou sem outra saída que não fosse aprovar e promover o curso de ação determinado pelos sauditas, com algumas acomodações em relação aos interesses dos EUA delineados acima. Por um lado, Trump poderia facilmente aplicar contra os sauditas o mesmo pretexto do "apoio ao terrorismo" que aplicou aos qataris. Por outro lado, o poder do lobby saudita em Washington e a ausência de potência supletiva capaz de fazer à Arábia Saudita o que a Arábia Saudita está fazendo ao Qatar significa que os sauditas não estão simplesmente seguindo ordens de Washington.

Contudo, à luz da próxima visita de Trump à Polônia e de sua participação na cúpula da chamada Iniciativa Três Mares [ing. Three Seas Initiative], deve-se também considerar a possibilidade de os EUA terem visto no Qatar um concorrente não desejado no mercado do gás natural liquefeito.

Vai-se tornando aparente que os EUA continuarão a expandir o próprio papel como exportador futuro de hidrocarbonetos, que evidentemente os porá em conflito não só com a Rússia, mas também com o Qatar e até com a Arábia Saudita. Vai também se tornando aparente que pelo menos parte daquela expansão acontecerá na Europa, ou que o mercado ao qual o Qatar esperou ganhar acesso ao patrocinar jihadistas na Síria pavimentará o caminho para os gasodutos dos EUA até a Europa.

O confronto entre EUA e Qatar parece ter tido o efeito de 'mostrar' tudo isso aos líderes do Qatar, os quais, evidentemente com medo de que qualquer sinal de fraqueza possa levar à queda do governo e até à morte dos governantes, meteram o pé nos freios e puseram-se a procurar apoio de fontes não ortodoxas. Esse processo, por sua vez, mostrou aos dois lado a extensão do sentimento anti-sauditas na região e os limites da influência dos EUA.

O presidente Erdogan da Turquia saiu fortemente em apoio ao Qatar, e chegou a reafirmar a aliança militar Turquia-Qatar e mandar soldados para o Qatar. O Paquistão, igualmente, decidiu enviar força militar ao Qatar. Coletivamente essas ações são aparentemente suficientes para dissuadir qualquer aventureirismo militar saudita, possivelmente em cooperação com facções insatisfeitas dos militares qataris. Nesse estágio, será necessária uma intervenção militar direta dos EUA para derrubar o governo qatari, mas os EUA claramente preferem deixar o serviço mais sujo para 'representantes' locais. Acima de tudo, não há sinais de qualquer esforço para interditar ou bloquear o trânsito dos navios-tanques de gás natural liquefeito do Qatar. O Egito, por exemplo, uniu-se à coalizão anti-Qatar, mas não bloqueou o trânsito de navios-tanques de transporte de gás natural liquefeito do Qatar que viajam pelo Canal de Suez.

Ainda assim, os líderes do Qatar preocuparam-se muito, a ponto de enviar seu ministro de Relações Exteriores a Moscou para consultas. Mesmo assim, considerando que a Arábia Saudita respondeu ao apoio da Turquia ao Qatar mediante o apoio que ofereceu à causa curda – até aqui só verbal –, parece, sim, que Rússia, Turquia e muitos outros países na região não querem ver o Qatar posto de joelhos.

Porta-vozes militares russos também observaram que enquanto isso a intensidade da guerra na Síria caiu muito, porque os militantes apoiados por Qatar e Arábia Saudita estão agora em situação muito confusa, sem poder ver com clareza quem seria o inimigo deles, se forças sírias ou outros grupos rebeldes. Mas, a situação avançando, é extremamente improvável que os qataris venham a colaborar intimamente em qualquer esquema saudita. Muito mais provável, isso sim, é que o Qatar afaste-se cada vez mais das políticas sauditas e reforce seus laços com a Turquia, e assim, indiretamente, também com Rússia e Irã.

Como nota final, não se pode deixar de pensar que, sim, se trata de confronto grave e muito perigoso entre, afinal de contas, dois aliados crucialmente importantes dos EUA. Considerando que ambos Qatar e Arábia Saudita são membros do "Mundo Livre" (sic) cujo líder não confrontado são os EUA, o fato de que uns poucos desacordos políticos entre esses membros já não possam ser geridos nem com medidas tão próximas de um bloqueio e de ameaças de guerra não depõe a favor da habilidade dos EUA para defender o próprio império.

Por mais que a violência do conflito sauditas-qataris não tenha precedentes, de modo algum é o único conflito interno no "Mundo Livre" que os EUA parecem não ter forças para resolver. Já aconteceu o Brexit; crescem a divisão entre "União Europeia de duas velocidades" e os rachas Turquia/UE e Turquia/OTAN; goraram os dois acordos comerciais multilaterais que ainda mantinham os EUA como centro, os acordos TTIP e TPP. E há muitos outros sinais do enfraquecimento dos EUA.

Terem usado a Arábia Saudita contra o Qatar sugere que os EUA estejam andando rumo a um modo diferente de governança imperial, a saber, "dividir para governar" também seus próprios estados-clientes. No curto prazo é bem possível que funcione. Mas a consciência de que o processo é exatamente esse, entre os próprios estados-clientes dos EUA, os está levando a procurar a ajuda dos russos. E isso, afinal, é que está gerando cada vez mais frequentemente as narrativas de "intromissão russa". Que já surgiram também no caso do Qatar.

Agradecimentos aos anônimos tradutores da Vila Vodoo e aos amigos do movimento palestino que nos enviaram!!!

quinta-feira, 22 de junho de 2017

 

Literatura afrolatina e diásporas do Atlântico : ENCONTRO DAS ÁGUAS: PRECISAMOS FALAR SOBRE AFETIV...

Literatura afrolatina e diásporas do Atlântico :
ENCONTRO DAS ÁGUAS: PRECISAMOS FALAR SOBRE AFETIV...
: ENCONTRO DAS ÁGUAS: PRECISAMOS FALAR SOBRE AFETIVIDADE Gênero, raça, sexualidade e religiosidade de matriz africana são temas tratados ...





ENCONTRO DAS ÁGUAS: PRECISAMOS FALAR SOBRE AFETIVIDADE

Gênero, raça, sexualidade e religiosidade de matriz africana são temas tratados no documentário “Encontro das águas” | Foto: Estúdio Pose
O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem nossa capacidade de amar. bell hooks

Há temas que são urgentes, Libertem Rafael Braga, Diretas já, a reforma trabalhista. Outros se constituem nas insurgências dos tecidos sociais ___ Encontro das Águas, documentário produzido por Flávia dos Santos e Zaíra Pires, faz parte desse segundo grupo, onde Iara Viana e Rosana Pires Viana, contam-nos sua história de encontros, cumplicidade e AMOR.
Impossível não pensar, que este é o momento. Como ambas na roda de conversa e apresentação do documentário (Bar Aparelha Luzia, na cidade de São Paulo) negritaram__ “Precisamos falar de Amor”, e não há momento mais oportuno para este tema, um momento em que a violência e genocídio sobre a nossa população negra aumentou, em que um racismo/sexismo se tornou a narrativa predominante. A  celebração do Amor, é uma arma revolucionária, isso nos recorda bell hooks em seu artigo Vivendo de Amor  , Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar.
É certo, que não raras vezes temos dado e compartilhado violência, porque bem sabemos de todos os traumas, dores, cicatrizes e enorme solidão que as chagas raciais/sexistas tem nos causado, principalmente quando nos encontramos distantes de espaços comunitários e de afetividade, pois ninguém pode amar, quando se é gestado para odiar toda imagem recíproca a si.
Portanto, se o racismo/sexismo habitam nossas entranhas ___Duas mulheres Pretas, felizes, casando-se com a benção dos orixás. Uma família Preta, ousando a tônica do embranquecimento, que nos faz desejar enlouquecidamente a brancura, não como um simples matiz de cor, mas na possibilidade de existência e de vir a ser gente. Rosana Viana aponta, casamento homoafetivo oficializado legitima o processo de luta desse grupo historicamente silenciado por estruturas heteronormativas.
É preciso sim, falarmos sobre felicidade, Amor, afetividade, famílias negras empoderadas, ao compreendermos que nos foi impossível fugir a lógicas raciais/sexistas e que estas organizam parte de nossos sentimentos e quererências, contudo sempre há fissuras, de corpos que teimam não apenas em sobreviver, mas em sorrir, compartilhar e Amar.  Pois, nossa luta é pelo direito de sermos felizes e como bem pontuou a mãe de Santo que fez a cerimônia, o Candomblé é a religião da felicidade, cultuamos a felicidade o tempo todo. Nessa diáspora atlântica conjugar nossas vidas em cosmovisões de mundo, que afrontam as lógicas mercantis do deus cristão, nos tem possibilitado reconfigurar laços e ritmos que nos reconectam com nossa ancestralidade africana, ao mesmo tempo em que nos fortalece para um cotidiano que tem como desejo nossa aniquilação.
 Mas podemos nós, Pretxs que somos falar sobre o prisma de tais substantivos? Iara Viana e Rosana Pires nos dizem com sua existência, que sim. É possível, extremamente necessário e insurgente.
Vem meu/minha pretx pra cá,
Pros cafundó do meu sertão....
na caatinga do meu coração
 (Assucena Assucena)


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