Mision Verdad. Caminhando na linha divisória entre o liberalismo e o fascismo. Comunidad Saker Latinoamérica, 26 de janeiro 2026.

 


Caminhando na linha divisória entre o liberalismo e o fascismo

Misión Verdad – 21 de novembro de 2025

Foto de capa: O equilibrista, 1923 (Foto: Paul Klee)


“Todo venezuelano nasce com direitos inalienáveis concedidos pelo nosso Criador, não pelos homens”.

“Manifesto da Liberdade”: María Corina Machado

Esta frase, que abre o documento programático de María Corina Machado publicado no The Washington Post, pode ser lida ingenuamente como uma mera invocação retórica à dignidade humana, mas é algo mais: uma declaração teológico-política, uma restituição da “ordem natural”, onde os direitos se baseiam não na soberania popular nem no contrato social, mas em uma providência divina que sanciona a propriedade, a iniciativa privada e a hierarquia desigual.

O sujeito dessa ordem é o indivíduo proprietário (e nunca o cidadão), cuja liberdade é medida por sua capacidade de acumular, defender e expandir seu domínio. É aqui que começa a ambiguidade: uma dialética entre o discurso do liberalismo clássico e a lógica do fascismo contemporâneo.

O Manifesto da Liberdade é um plano de governo? Sim, no sentido convencional, mas vai além: é uma liturgia do restabelecimento, um rito simbólico que busca apagar duas décadas de experiência histórica e reinstaurar uma época – a Venezuela antes do chavismo – como o único horizonte legítimo do político.

Mas essa restituição é pensada apenas como uma operação de purga: de instituições, de atores, de memórias. E é nessa operação que o discurso liberal desliza para o fascista.

O texto se apresenta, assim, como um diagnóstico ideológico e até estruturalmente psicológico e classista de Machado, que não esconde seus objetivos, mesmo com a propaganda do Prêmio Nobel da Paz a seu favor. Vejamos.

O liberalismo como teodiceia do mercado

O Manifesto se apresenta como herdeiro da liberdade de expressão, da soberania popular, do Estado limitado. Mas, na verdade, revela outra genealogia. Seguindo o filósofo alemão Franz Hinkelammert, não se trata de um liberalismo que defende direitos frente ao poder, mas de uma religião do mercado que substitui o direito pela propriedade e o dever pelo cálculo.

O texto diz: “Quando as pessoas prosperam como consequência de seu trabalho, todos os outros direitos humanos são concedidos como consequência”. Aqui, na verdade, ele não está afirmando um princípio democrático: está repetindo, quase textualmente, a doutrina de Ludwig von Mises: não há direitos naturais, mas direitos de propriedade; e quem não possui, não tem direito à vida.

Essa é a mesma lógica que, segundo Hinkelammert, leva Friedrich Hayek a justificar o controle demográfico tradicional – fomes, pestes, mortalidade infantil —–como mecanismos “naturais” de regulação. No Manifesto, o direito à vida é equiparado ao direito de proteger a propriedade:

“Todo indivíduo tem direito a proteger sua vida, sua família, sua propriedade e sua liberdade”.

Observe bem: propriedade = vida. Não se trata de uma negligência linguística; nessa invocação, anuncia-se uma moral em que a defesa do patrimônio – individual ou nacional – legitima a eliminação do obstáculo. É a lógica que, historicamente, permitiu que os liberais britânicos e americanos criassem e celebrassem os campos de concentração antes que os nazistas os aperfeiçoassem (como mostra o historiador italiano Doménico Losurdo em Contrahistória do liberalismo). A violência sistêmica é parte integrante do liberalismo: é seu potencial reprimido, pronto para se manifestar quando a ordem de classes está em perigo.

A purga como condição da liberdade

A segunda parte do Manifesto é a restituição: devolver o que foi roubado, recuperar o que foi perdido, restabelecer a confiança. Mas o que se entende por “roubo”? Não apenas a expropriação de bens, mas a usurpação do sentido político. O chavismo aqui é o Outro existencial, o inimigo definitivo que “corrompeu a nação” e “deve ser erradicado”; não vencido, muito menos convencido, mas eliminado.

Essa é a lógica do fascismo de nossa época, segundo o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos: a indiferença radical para com a humanidade do outro, justificada como defesa da civilização. No caso venezuelano, essa lógica opera desde 2002: a sabotagem petrolífera como “greve pela democracia” ou as guarimbas como “resistência cívica”. Machado institucionaliza discursivamente essa lógica, mas também o faz de maneira operacional.

Quando afirma que “o protesto cívico pacífico não ameaça o país: fortalece-o”, ela não está defendendo a dissidência; está traçando uma linha: o pacífico é aquilo que não questiona a estrutura de propriedade e poder. O que questiona – a mobilização operária, a organização comunitária, a defesa do Estado petrolífero – é, por definição, “não pacífico” e, portanto, “ilegítimo”.

Assim, a “liberdade” do Manifesto é apenas para alguns, pois pressupõe a anulação de outros. Nisso, repete-se o esquema clássico do Herrenvolk: a democracia dos senhores proprietários, onde a cidadania é definida por exclusão racial, cultural e política.

Na Venezuela, essa exclusão se articularia como chavismo = ilegitimidade. Trata-se de despolitizar um povo à força de pau e fogo.

A máquina da guerra civil

O Manifesto promete reformar “as Forças Armadas” e a polícia, restaurar a confiança, promover a defesa legítima. Mas por trás dessa retórica institucional se perfila um projeto de força bruta contra a dissidência organizada.

A noção de “defesa legítima” é fundamental. No Direito Internacional, essa figura permite o uso da força diante de uma agressão iminente. Mas, no imaginário machadista, a agressão iminente é o próprio chavismo: uma presença que deve ser esmagada. Não é à toa que há numerosos apelos à intervenção militar estrangeira.

É por isso que, desde 2014, a oposição justifica a violência como “resposta proporcional”: queimar infraestruturas públicas porque há inflação, matar policiais porque há repressão.

Essa é a lógica do fascismo contemporâneo: a guerra civil como forma de pressão antigovernamental. Não uma guerra declarada, mas como tensão permanente; a violência é delegada a atores não estatais e difusos (guarimberos, sicários, mercenários, narcoparamilitares) e depois reabsorvida como programa político.

Essa foi a estratégia de Mussolini (no poder) na década de 1920, celebrada pela revista The Economist e por Winston Churchill. Hoje, na Venezuela, ela se repete sob o nome de liberdade.

A Venezuela como laboratório do neoliberalismo totalitário

O Manifesto propõe um Estado seletivo: presente na repressão, ausente na proteção social; forte na defesa do capital, fraco na garantia dos direitos.

A promessa de “liberar as empresas estatais e devolver a exploração do setor petrolífero à criatividade de homens e mulheres livres” não é uma aposta na eficiência, isso está claro. É uma entrega planejada: primeiro, a destruição do aparato produtivo público (por meio de sanções, sabotagem, corrupção induzida); depois, sua liquidação para capitais transnacionais – especialmente norte-americanos – sob o argumento de que somente eles possuem a “criatividade” para governar o que o povo venezuelano não sabe administrar, nem mesmo seus melhores tecnocratas.

Já testemunhamos essa estratégia durante a “abertura petrolífera” da última década do século XX. Como documenta a economista italiana Clara Mattei em El orden del capital (A ordem do capital), a austeridade não é uma política econômica: é uma tecnologia de dominação.

A pesquisadora europeia lembra que, na Itália fascista dos anos 1920, os cortes sociais, a repressão salarial e a privatização em massa foram o motor da ordem capitalista. E assim celebrados pelos liberais internacionais – Einaudi, Churchill, o Times – como o único caminho possível diante do “perigo bolchevique”.

Hoje, Machado ocupa o mesmo lugar: a figura tecnocrática-populista que promete “sanar as finanças” enquanto prepara o terreno para a acumulação por desapropriação. Seu discurso é deliberadamente ambíguo: fala de “democracia”, mas se recusa a reconhecer eleições; defende os “direitos humanos”, mas exige intervenção militar estrangeira.

Essa ambiguidade é supostamente estratégica. Permite-lhe mobilizar as classes médias urbanas (aterrorizadas pela crise, seduzidas pelo mito da ordem) e, ao mesmo tempo, garantir aos capitais que a mudança de regime será restauradora.

Entre o culto e a cruzada

María Corina Machado não é fascista no sentido clássico: não tem partido único, não usa uniformes, não ergue figuras para o culto caudilhista. Mas participa ativamente na construção de um fascismo social – nos termos de Sousa Santos – onde a democracia se mantém como fachada, enquanto a economia se entrega ao mercado e a política se submete à lógica do inimigo.

Seu fascismo é prático: uma disposição para o extermínio simbólico e material do Outro quando este se interpõe no caminho da acumulação. Da mesma forma, seu liberalismo é funcional: uma justificativa moral para a desigualdade, disfarçada de ética individual.

Nessa fronteira – entre o discurso liberal e a prática fascista – caminha Machado. Mas ela não está sozinha. Ela é acompanhada por uma constelação global de figuras que compartilham sua matriz: Javier Milei, que chama de “liberdade” a demolição do Estado social; Donald Trump, que chama de “justiça” a desestabilização internacional do comércio; Benjamin Netanyahu, que chama de “defesa” o genocídio.

A Venezuela, nesse contexto, seria um laboratório. Um espaço onde deve ser testada a viabilidade de um projeto que aspira reconciliar o que a História separou: a luva de veludo do liberalismo e o punho de ferro do fascismo.

É agora que devemos entender claramente que, quando o mercado se torna um deus, o ser humano se torna um sacrifício. Uma religião da qual Machado é fiel servidora, por origem e por destino.

— Somos um grupo de pesquisadores independentes dedicados a analisar o processo de guerra contra a Venezuela e suas implicações globais. Desde o início, nosso conteúdo tem sido de uso livre. Dependemos de doações e colaborações para sustentar este projeto. Se você deseja contribuir com a Misión Verdad, pode fazê-lo aqui.

Fonte: https://misionverdad.com/venezuela/caminando-en-la-linea-fronteriza-entre-el-liberalismo-y-el-fascismo

Fonte da tradução: https://sakerlatam.blog/caminhando-na-linha-divisoria-entre-o-liberalismo-e-o-fascismo/


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