EUA e luta de classes − A Próxima Guerra Racial Não Será Racial
17/8/2014, Kareem Abdul-Jabbar, Time
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Ferguson não é apenas questão de racismo sistêmico − é sobre a luta de classes e como os pobres nos EUA são tratados, diz Kareem Abdul-Jabbar
Você
provavelmente já ouviu falar sobre o tiroteio na Estadual Kent: dia
4/5/1970, a Guarda Nacional de Ohio abriu fogo contra estudantes que
protestavam na Universidade Estadual Kent. Naqueles 13 segundos de
tiroteio, quatro estudantes foram mortos e nove foram feridos, um dos
quais ficou paralítico para sempre. O choque e os protestos resultaram
numa greve nacional de 4 milhões de estudantes, que fecharam mais de 450
campus no país. Cinco dias depois do tiroteio, 100 mil manifestantes
reuniram para protestar em Washington, D.C. E a juventude da nação foi
energicamente mobilizada para pôr fim à Guerra do Vietnã, ao racismo, ao
sexismo e à fé cega depositada em políticos do establishment.
Você provavelmente nunca ouviu falar sobre o tiroteio na Estadual Jackson.
Dia
14/5/1970, dez dias depois que a Estadual Kent pôs fogo no país, na
Universidade Estadual Jackson, de alunos predominantemente negros, a
polícia assassinou a tiros dois estudantes negros (um aluno do último
ano do secundário; o outro, pai de um bebê de 18 meses) e feriu outros
doze.
Não
houve indignação nacional. O país não foi mobilizado para fazer coisa
alguma. O leviatã sem coração a que chamamos história engoliu o evento
de Jackson inteiro, sem mastigar, apagando-o da memória nacional.
E,
a menos que queiramos que a atrocidade em Ferguson também seja engolida
e vire nada além de irritação nos intestinos na história, temos de
tratar o caso não como mais um ato do racismo sistêmico nesse país, mas
como o que o caso em Ferguson também é: guerra de classes.
Focando
exclusivamente o aspecto racial, passa-se a discutir se a morte de
Michael Brown – ou a morte dos outros três negros desarmados também
assassinados pela polícia nos EUA, no período de um mês – é questão de
discriminação ou não; e se a polícia tem justificativa para o que faz ou
não. E perguntaremos se não há tanto racismo de negros contra brancos
nos EUA, quanto de brancos contra negros. (E há. Mas o racismo de
brancos contra negros tem impacto econômico no futuro da comunidade
negra. Negros contra brancos praticamente têm efeito social zero).
E
perguntaremos se a Polícia nos EUA não é, ela própria, mais uma minoria
ameaçada nos EUA, sempre discriminada por causa da cor: azul [como seus
uniformes]. E é. Há muitos fatores a considerar, antes de condenar a
Polícia, dentre os quais as pressões políticas, o treinamento
inadequado, políticas antiquadas. E perguntaremos se os pretos não são
tão frequentemente mortos pela Polícia, porque cometem maior número de
crimes. (De fato, estudos mostram que os negros são atingidos com maior
frequência em algumas cidades, como New York City. É difícil
pintar quadro nacional mais amplo, porque os estudos são
escandalosamente imprestáveis. O estudo do Departamento de Defesa mostra
que nos EUA, entre 2003 e 2009, dentre mortes relacionadas a detenções,
há pequena diferença entre os números de negros, brancos ou latinos.
Mas o estudo não informa quantos deles estavam desarmados).
O
movimento sempre repetido de “protesto”, de todos-em-geral, contra o
racismo-dos-outros, só faz distrair os EUA para que não vejam a questão
maior, de que a reação desproporcional dos alvos-de-polícia (áudio- vídeo
com Itamar Assunção, no fim do parágrafo) baseia-se menos na cor da
pele e mais, muito mais, num tormento muito pior, de nível-Ebola: ser
pobre. É claro que para muitos, nos EUA, ser “de cor” é sinônimo de ser
pobre; e ser pobre é sinônimo de ser criminoso. Ironicamente, essa
cadeia de erros é encontrada também entre os pobres.
E isso, precisamente, é o que o status quo deseja.
O
Relatório do Censo dos EUA descobriu que 50 milhões de norte-americanos
são pobres. 50 milhões de eleitores é bloco poderoso, se organizados
num esforço orientado para buscar seus objetivos econômicos partilhados.
Assim sendo, é crucial que os riquíssimos “1%” mantenham separados os
pobres, isolados uns dos outros em grupos que se criam em torno de
questões emocionais-passionais como imigração, aborto, controle de
armas, de modo tal que, assim, divididos “por temas”, os pobres jamais
parem para pensar por que sempre são tão ferrados, há tanto tempo.
Um
modo para preservar as fraturas que geram tantos grupos é a
desinformação. Pesquisa recente sobre as redes de notícias concluiu que
60% de tudo que é noticiado na rede Fox e pelo Canal Fox News é falso.
Nas redes NBC e MSNBC, 46% do que é noticiado é falso. “Fiquem agora com
o Jornal Nacional”, pessoal!
Durante
os eventos em Ferguson, o canal Fox News pôs no ar uma foto em branco e
preto do Dr. Martin Luther King, Jr., com a seguinte frase no gerador
de caracteres: “Esquecida a mensagem de MLK/Protestos no Missouri
degeneram em violência”. Será que quando os dois presidentes Bush
invadiram o Iraque, a Fox “noticiou” que “Esquecida a mensagem de
Cristo/EUA não oferecem outra face e assassinam milhares de civis”?
Como
é possível que os telespectadores façam escolhas racionais, numa
democracia, se as fontes de informação estão todas corrompidas? Não é
possível. E os telespectadores não fazem escolhas racionais – exatamente
assim é que o “1%” controla o destino dos “99%”.
Ainda
pior que isso, alguns políticos e empresários conspiram para manter os
pobres exatamente como estão. No programa de sátira do noticiário que
mantém no canal HBO, “Last Week Tonight”, John Oliver fez um panorama da
indústria dos empréstimos a assalariados, e dos que viciosamente vivem
de explorar o desespero dos pobres. Como é possível que o estado admita a
existência de uma indústria que extorque juros de até 1.900%? No Texas,
o deputado estadual Gary Elkins impediu a aprovação de lei que
regulamentaria essa indústria (ele mesmo é proprietário de uma rede de
estabelecimento de empréstimos desse tipo). E a deputada que não parava
de criticar Elkins por causa do conflito de interesses, Vicki Truitt,
passou a trabalhar como lobbyista da ACE Cash Express apenas
17 dias depois de deixar a Câmara de Deputados. Na essência, Oliver
mostrou como os pobres são atraídos para um empréstimo, só para não
conseguirem quitar as prestações e serem obrigados a contrair outro
empréstimo. O ciclo não pode ser rompido.
Livros e filmes distópicos como Snowpiercer, The Giver, Divergent, Hunger Games, e Elysium fizeram
furor em anos recentes. Não porque tematizem a frustração adolescente
ante figuras de autoridade. Isso explicaria a popularidade entre
audiências mais jovens, mas não entre jovens na casa dos 20 e, até,
entre adultos de mais idade. A razão real pela qual todos acorremos para
ver o retrato de louça que Donald Sutherland constrói em Hunger Games,
de um presidente dos EUA frio, cruel, implacável, dedicado a preservar
os mais ricos enquanto pisa na garganta dos pobres, é que ali percebemos
ecos reais da real sociedade onde realmente vivemos, uma sociedade na
qual “1%” enriquece cada vez mais, enquanto as classes intermediárias
vão-se tornando mais pobres, a cada dia, já se aproximando do colapso.
Não há exagero aqui; estatísticas comprovam que é verdade. Segundo estudo do Pew Research Center de
2012, apenas metade dos lares nos EUA classificam-se como de renda
média, 11% menos, na comparação com os anos 1970s; a renda média da
classe média-média caiu 5% nos últimos dez anos; a riqueza total
encolheu 28%. Menos pessoas (apenas 23%) entendem que tenham meios
suficientes para se aposentarem. O pior de tudo: hoje, menos
norte-americanos do que jamais antes creem no mantra nacional segundo o
qual o trabalho-duro os arrancará da miséria.
Em
vez de nos unirmos para enfrentar o inimigo real – políticos,
legisladores e executivos eleitos e outros no poder que nada fazem –
caímos da armadilha de nos pôr uns contra os outros, consumindo nossa
energia combatendo gente-como-a-gente, em vez de combater nossos
inimigos. Não se trata só de incluir todas as raças e todos os partidos
políticos: trata-se também de não se deixar dividir por gênero. Em seu
livro Unspeakable Things: Sex, Lies and Revolution [Do
que não se fala: sexo, mentiras e revolução], Laurie Penny sugere que o
número sempre reduzido de oportunidades para homens jovens na
sociedade, os torna menos valiosos para as mulheres; resultado disso,
eles deslocam a própria ira: em vez de dirigi-la contra os que causam o
problema, dirigem-na contra outra figura que também sofre consequências
do processo: as mulheres.
Ah,
sim, sei bem que é injusto pintar os mais ricos nesses traços tão
gerais. Há alguns tipos super ricos que também super apoiam suas
comunidades. Há quem sinta algum pudor da própria riqueza e saia, no
esforço para ajudar outros. Mas não é absolutamente o caso da multidão
de milionários e bilionários que fazem lobby para diminuir a
distribuição de vales-comida, para diminuir o número de médicos em
serviços públicos de saúde, contra qualquer medida que reduza o peso das
dívidas de educação sobre nossos jovens e que se opõem à extensão de
benefícios a desempregados.
Com
cada novo evento de tiroteio/atrocidades mortos/defenda seu grupo, a
Polícia e o sistema judicial são novamente vistos como defensores de um status quo injusto.
A ira dos injustiçados cresce, e recomeçam os protestos exigindo
justiça. A imprensa-empresa entrevista qualquer “especialista” [desde
que absolutamente nada diga de novidade] e os “especialistas” distribuem
culpas e condenações.
E daí? Fazer o quê?
Não
estou dizendo que os protestos em Ferguson não sejam justificados –
eles são perfeitamente justificados. De fato, precisamos de mais
protestos nos EUA. Onde está nossa Kent Estadual? Quanto tempo, até que
se mobilizem 4 milhões de estudantes, em protesto pacífico nos EUA?
Porque sem isso nunca haverá mudança real.
A
classe média tem de se unir aos pobres; os norte-americanos brancos têm
de se unir aos norte-americanos negros em manifestações de massa, para
derrubar os políticos corruptos, para boicotar empresas de exploração,
para fazer aprovar leis que promovam a igualdade econômica e de
oportunidades, e para punir os que fazem de nosso futuro financeiro
objeto de desenfreada jogatina.
Sem
isso, só conseguiremos o que conseguimos em Ferguson: um bando de
celebridades e políticos, “ofendidos-de-televisão”, a manifestar
simpatia. Se não tivermos agenda específica – uma lista do que queremos
mudar e como, exatamente – continuaremos todos, outra vez e outra vez, a
nos reunir em torno dos cadáveres dos nossos filhos, pais, vizinhos
assassinados.
Espero que John Steinbeck esteja certo, quando escreveu em Vinhas da Ira, que “a repressão só serve para aproximar e unir os oprimidos”. Mas estou mais inclinado a fazer eco a Marvin Gaye, em “Inner City Blues” escrita um ano depois dos tiroteios nas universidades estaduais Kent e Jackson:
Inflação. Sem chance
de melhorar as finanças.
As contas, em pilhas, até o céu.
E matam aquele garoto.
Me dá vontade de gritar.
O jeito como eles mexem co’a minha vida,
me dá vontade de gritar.
O jeito como eles mexem co’a minha vida.
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