Movimento negro no caminho certo da longa jornada
Edson França
O título desse artigo, cujo
objetivo é avaliar a luta do movimento negro e apresentar perspectivas, é a
frase que sintetiza o texto, pois a luta contra o racismo e promoção social da
população negra no Brasil acumulou importantes vitórias, o movimento social
negro está mais maduro e em condições de estabelecer como foco a luta política
para ascensão de negras e negros aos espaços de poder e no poder executar uma
agenda que mitigue as desvantagens sociais, políticas, culturais e econômicas
que há cinco séculos aprisionam a população negra. O movimento negro está no
caminho certo da longa jornada para superação do racismo e seus nefastos
desdobramentos na sociedade brasileira.
Encerramento de uma década
Em 2013 encerramos uma década da
experiência de implantação das políticas públicas de igualdade racial propostas
por Lula e continuadas por Dilma Rousseff, o marco inaugural foi a sanção da
Lei 10.639/03 em 09 de janeiro de 2003, que institui a obrigatoriedade da
inclusão da História da África e da Cultura Afrobrasileira nos currículos
escolares e, logo após, em 21 de março do mesmo ano, a instituição da SEPPIR. Entre
2003 aos dias atuais algumas medidas no campo da igualdade racial, com impactos
diferenciados, foram adotadas, colocando o Brasil diante de um processo
pioneiro de promoção social da população negra – a base para essa afirmação são
a subestimação, resistência e omissão dos governos anteriores nessa matéria.
Há certa ambiguidade na postura
do governo federal em matéria de política de igualdade racial, pois a última década
foi fértil em elaboração, bem discursiva e carente de prática, vimos propostas
e leis não saírem do papel. No entanto, as diversas formas de transferências de
renda com vista a superar a pobreza e o foco na educação são destaques
importantes de políticas públicas que produziram benefícios concretos para
população negra e resgataram direitos negados desde a abolição.
As transferências de recursos
através do Programa Bolsa Família, principal vitrine do governo federal junto a
parcela mais marginalizada economicamente do povo, foram fundamentais para
superar a extrema pobreza de parcela significativa da população brasileira,
todos sabem que a fome tem pressa, não pode esperar. O Plano de Ação da Conferência
de Durban prevê o enfrentamento da pobreza como uma medida importante na
superação dos desdobramentos do racismo e os Objetivos do Milênio instam os
países a erradicar a fome e a miséria, por isso Lula e Dilma seguem em coerência
com os resultados dos documentos que o Brasil é signatário. Apesar de as
transferências de renda, na forma adotada, serem medidas meritórias, não
emancipam os beneficiários, por isso, consideramos que elas, a despeito da importância
e do grande apelo e aceitação popular, devam ser emergenciais, temporárias e
acompanhadas por uma política de valorização do trabalho e geração de renda, o
trabalho descente emancipa.
Considerando que 73% dos
cadastrados no programa Bolsa Família são negros (dados do Ministério de
Desenvolvimento Social – MDS), interessa a sociedade civil, especialmente ao movimento
negro, exigir políticas públicas estruturantes, como forma de progressão das
políticas de transferências, visto que isoladas tornam potenciais estimuladoras
de dependência. Ao completar 12 anos de governo e caminhando para mais uma
vitória, as forças sociais e políticas que o sustentaram não podem considerar
razoável que o Programa Bolsa Família continue sendo o carro chefe das
políticas sociais no Brasil.
Foi importante o pronunciamento
do STF sobre a legalidade e legitimidade das ações afirmativas e cotas para
negros nas universidades públicas, pois abriu espaço para aprovação da lei
federal que institui as cotas, aprofundando um virtuoso processo de inclusão de
negros e pobres nas universidades públicas. Hoje, se somarmos iniciativas como
o PROUNI, REUNI, cotas sociorraciais e várias modalidades de inclusão, verificaremos
que mais de um milhão de negros se matriculam anualmente nas universidades. Trata-se
de uma conquista fundamental dada a característica emancipadora da educação e,
certamente, contribuirá para criar uma classe média negra capaz de enfrentar o
racismo em patamar superior.
Os pontos frágeis do modelo em
curso para igualdade racial são salientados no acirramento da violência; no
genocídio contra a juventude negra que exigiu dois pronunciamentos da
Presidenta sobre o tema; na super lotação e caos no sistema carcerário,
explicitado pelo caso de Pedrinhas no Maranhão; na manutenção das desigualdades
sociais, políticas e econômicas; na presença majoritária dos negros nos
estratos subalternos da população brasileira; nos lucros recordes realizados
pela oligarquia que comanda o sistema financeiro e na crescente desindustrialização
nacional. O país precisa de uma pujante agenda desenvolvimentista, pois,
economias fortemente parasitárias como a brasileira não tem energia para
sustentar mudanças estruturais que promova socioeconomicamente grandes
contingentes populacionais, tal qual a exigida para superação do racismo no
Brasil.
Verificamos que ao longo dos
últimos dez anos todas as políticas focadas para os interesses dos
trabalhadores, movimentos sociais e segmentos em situação de vulnerabilidade
(povos indígenas, população negra, mulheres, jovens, população LGBT, dentre
outras) receberam dura resistência das forças políticas partidárias que
representam o capital, mais precisamente DEM, PSDB e PPS. A pressão da direita racista,
golpista e conservadora, a despeito das derrotas eleitorais, mantêm-se forte e enraizada
no Congresso Nacional; em governo de estados e em capitais importantes,
destacadamente, São Paulo e Minas Gerais, Salvador e Curitiba; nos grandes
meios de comunicação e no judiciário, acirrada pela postura do Presidente do
STF e a maioria dos Ministros na ação Penal 470.
Fica patente que as forças
progressistas além de impor novas derrotas eleitorais ao conservadorismo
precisarão enfrentar com destemor e maior convicção a guerra pela hegemonia na
sociedade, desenvolver o Brasil com distribuição de renda e equidade social. Contar
com a governabilidade oferecida pela aliança parlamentar formada no Congresso Nacional
e na conciliação de classes não será possível, alguém tem que ceder, abrir mão
de privilégio e o povo sempre cedeu. Para avançar, a pauta das reformas
(comunicação, política, judiciária, tributária, agrária e urbana) deve se
constituir em prioridade a ser construída com o povo.
Não há possibilidade de avanços
efetivos na agenda antirracismo e social enquanto setores conservadores
estiverem fortalecidos, enquanto o estado nacional tiver uma estrutura
burocrática burguesa, voltada a atender a classe dominante. A plataforma do
movimento negro incide sobre privilégios políticos e econômicos da elite, em
última instância, é uma plataforma classista, pois não se estabelece justiça
recrudescendo ou consolidando desigualdade.
Dilma fica
O cenário político tem apontado
para vitória de Dilma Rousseff na eleição que se avizinha, segundo última
pesquisa IBOPE, encomendada pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI),
subiu de 37% a 43% o índice de aprovação da Presidenta. A oposição conservadora
representada pelo trio PSDB, DEM e PPS encontra-se fragilizada e dividida, sem
alternativa viável ao Brasil, sem uma agenda positiva com vista ao
desenvolvimento socioeconômico da nação, com o núcleo duro, formado
majoritariamente pelo PSDB paulista, mergulhado em denúncia de corrupção, de
modo que continua ao encargo da grande mídia o papel ativo de oposição
conservadora ao projeto popular em curso. É crescente a possibilidade de total
dispersão do trio oposicionista no próximo pleito eleitoral.
A dita terceira via formada pela
aliança entre Eduardo Campos e Marina Silva está com dificuldade de
viabilizar-se, não dispõem de afinidade político programática, as duas
principais lideranças disputam protagonismo, ambos perderam aliados e palanques
estaduais fundamentais na construção da alternativa à Presidência da República.
Há que se destacar que Marina e Campos (ou Campos e Marina) não têm espaços à
esquerda para crescer, as alianças que, possivelmente, atrairão devem vir do
espólio da fragmentação do consorcio conservador que compôs a principal oposição
a Lula, Dilma e as políticas sociais por eles implantadas. O movimento negro
tem um projeto de esquerda consolidado, qualquer alternativa cujo núcleo
político seja hegemonicamente conservador será um prejuízo ao movimento e um
atraso ao país.
No entanto, não podemos
considerar Dilma invencível nessa eleição, a principal ameaça para sua vitória eleitoral
é a crise econômica. A crise continua impactando fortemente nas principais
economias globais e na periferia do euro, destruindo economias, arrasando o
estado de bem estar social implantado na Europa, estimulando remédios antipopulares
e despertando a sanha beligerante do imperialismo.
Segundo dados divulgados pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Ong Oxfam Intermón no Fórum
Econômico Mundial de Davos, de 2008 a 2013 a crise mundial desempregou 62
milhões de trabalhadores e intensificou a concentração de rendas a índices
recordes, hoje metade da riqueza mundial está concentrada nas mãos de uma elite
composta por 1% da população, é estimado que em 2018 haverá 215 milhões de
desempregados no mundo. Há anos a UNEGRO tem dito que a crise não nos
interessa, pois ela transforma raça e gênero em critério de oportunidade e
qualidade de trabalho, recrudescendo o racismo, a xenofobia e várias formas de
intolerâncias.
Não se deve descartar a
possibilidade da crise corroer a economia nacional. A capacidade de Dilma, ao
contrário dos governos europeus, apresentar alternativa não regressiva, que
melhore a qualidade de vida dos brasileiros, desenvolva o país, assegure
empregos de qualidade e os direitos sociais e trabalhistas garantirá sua
permanência no mais alto cargo da República.
O movimento negro não pode ter
dúvida, deve garantir os avanços conquistados e exigir mais, apesar da dificuldade
de setores da esquerda brasileira em compreender com maior profundidade o
protesto negro (como dizia Clóvis Moura), é no campo popular e democrático que
se encontram as possibilidades de realizar a plataforma antirracismo, pois a
luta contra o racismo é também uma luta de classe.
Democracia negada
A UNEGRO compreende que o racismo
e seus agravos dificilmente serão superados com a ausência da população negra
nos espaços de poder e decisão, consideramos um grave defeito da jovem
democracia brasileira a profunda sub-representação de negros e negras nos
espaços de representação e decisão política.
Trata-se de uma distorção que os
números não tergiversam, denunciam: dos 40 ministérios do Governo Dilma, apenas
o da Igualdade Racial a titular da pasta é uma mulher negra; dentre as 50
maiores estatais nacionais apenas a BAHIAGÁS (estatal baiana) é presidida por
um negro; o Congresso Nacional é composto por 8,3% de negros, enquanto 50,6%
dos brasileiros são negros, além de contarmos com a lamentável ausência de
representação negra em algumas assembleias legislativas e câmaras de vereadores
em Capitais.
Outro ponto sensível sobre
população negra e sub-representatividade política é que em todo Congresso Nacional
apenas um deputado é militante orgânico do movimento negro (Luiz Alberto –
PT/BA e MNU), assim como são raríssimas as presenças de negras ou negros
orgânicos do movimento negro nos ministérios – sem contar a SEPPIR e Fundação
Cultural Palmares (não tenho o número exato, mas arrisco dizer que há dois no
MEC, um no Ministério da Saúde, uma na Secretaria da Juventude e uma no MDA, total
de cinco militantes orgânicos em todos os ministérios, excetuando a SEPPIR e
MINC onde se aloja a Fundação Palmares), ou seja, o movimento negro é um movimento
social praticamente sem representação política. Daí a dificuldade das propostas
relacionadas com a questão racial serem aprovadas no Parlamento e implementadas
pelo Executivo.
Considero que somente o racismo
explica a iniquidade da sub-representação da população negra nos espaços de
poder e decisão, trata-se um poderoso fator de desestimulação da participação
política da população negra, potencial gerador de tensão no seio do povo e um
dos mais graves problemas políticos da democracia brasileira na atualidade.
Democracia é um conceito
consolidado desde a Grécia Clássica, “governo do povo pelo povo”, ou seja,
governo em que o povo exerce soberania. A distância da população negra nos
legislativos e executivos brasileiros se constitui num sequestro da soberania e
negação da democracia. Deve ser tratado como uma importante questão nacional,
pois não há caminhos seguros para uma profunda unidade do povo, desenvolvimento
justo e sustentável e futuro promissor ao Brasil enquanto não vencer o racismo
incorporando política e economicamente mais da metade de sua população.
Em 2014 o movimento negro deve dar
um profundo mergulho nos esforços dos movimentos sociais e políticos de impor a
reforma política, uma reforma que privilegie a participação popular, fortaleça
os partidos, supere o impacto do capital nos resultados eleitorais, combata a
sub-representação de mulheres, negros e jovens dos espaços de poder. Essa deve
ser a mãe das reformas e prioridade na agenda democrática.
Agenda eleitoral e a luta contra o racismo
Nos anos pares, a cada biênio,
ocorre eleição no Brasil, apesar da energia e recursos desprendidos, essa
agenda tem beneficiado a democracia brasileira, na medida em que o mundo
político, a classe dominante e o senso comum se atentam e mobilizam para o
debate analisando o passado e projetando o futuro. Apesar de certo rebaixamento
nos conteúdos dos debates promovido pela direita populista, gradativamente a
consciência política do povo vai aumentando, o processo eleitoral tem também
caráter pedagógico. Avaliam os governos, novos compromissos são estabelecidos e
outros reiterados, de modo que a agenda eleitoral brasileira é terreno árido
para acomodação.
O movimento negro tem aprimorado
sua participação no debate eleitoral em todos os níveis, desde as contribuições
de Abdias do Nascimento no governo Brizola (RJ) e no Parlamento (Câmara e
Senado), logo após a Ditadura Militar aos dias atuais. Registro como marco
importante da questão eleitoral e luta antirracismo a formulação do caderno
“Brasil Sem Racismo”, que compôs o vitorioso “Programa de Governo 2002
Coligação Lula Presidente”, estabeleceu as bases da “Política de Igualdade
Racial”, em processo de implantação em todo país desde 2003. Assim, verificamos
a importância da eleição no processo político de superação do racismo, por isso
deve ser a agenda prioritária para o movimento em 2014.
Devemos trabalhar para que o voto
negro vá para candidaturas negras e/ou de esquerda, comprometida com a
plataforma do movimento negro, com o desenvolvimento nacional, com os
interesses dos trabalhadores, dos movimentos sociais e do povo. Não devemos
estimular a ideia de que qualquer negro pode representar os anseios do
movimento negro ou qualquer branco não pode representar.
A prioridade do movimento negro
nessa eleição deve ser eleger um grande número de negros e progressistas para
as assembleias estaduais, câmara federal, senado, governos de estados e Dilma
para Presidência da República; acumular força para exigir a execução da
plataforma antirracismo; introduzir o debate sobre a dificuldade de negros
votarem em candidaturas negras e de esquerda; abrir espaço político para incluir
negros e negras nas composições dos futuros governos; e consolidar lideranças
negras nos cenários estaduais.
A atual pauta política do
movimento negro deve está presente no debate eleitoral, devemos denunciar e
propor medidas contra o genocídio que tem dizimado a juventude negra; dar
consecução na agenda quilombola; instituir o SINAPIR; qualificar as estruturas
governamentais de igualdade racial; prevê um volume de recursos digno para
implantação das políticas de igualdade racial, ajustar a implantação das cotas
nas universidades e incluir negras e negros em todos os escalões dos serviços
públicos; e implementar definitivamente o estatuto da Igualdade Racial.
Movimentos sociais são atores políticos relevantes
A grata surpresa em 2013 foi as
mobilizações populares de junho, marco de um novo levante de massa, dessa vez
se caracterizou pelo caráter espontâneo, logo, sem o controle dos Partidos e
dos movimentos sociais brasileiro. Desde os eventos das “Diretas Já” e “Fora
Collor” não ocorria no país manifestações de massas na proporção das que
iniciaram em junho de 2013. Apesar de ainda não estar completamente
estabilizado esse processo e de não ter posições definitivas e peremptórias
sobre causas, impactos e significados desse histórico levante popular, um
resultado legou: fortaleceu o caráter político dos movimentos sociais e sua
condição de interferir na agenda nacional.
No Brasil o movimento negro
sempre teve projeto de minoria, focado na resistência dos agravos do racismo,
isso tem dificultado maiores avanços, visto que as ações de minorias
marginalizadas geralmente são introspectivas, ou seja, de domínio exclusivo do
campo. Prova disso é o desconhecimento do senso comum dos movimentos sociais da
pauta antirracismo, só tem conhecimento das cotas.
Considero que para o movimento
negro ajustar sua política a altura das exigências que uma maioria populacional
impõe, tem que investir mais na unidade e ampliação de sua base social, propor
também para além da esfera do racismo, pensar mais integralmente o Brasil. Para
isso tem que construir mais pontes com outros segmentos dos movimentos sociais e
inserir as reivindicações voltadas a superação dos impactos do racismo no
processo da luta popular pelas mudanças. Por isso é fundamental compor espaços
de articulação local e nacional como a Coordenação dos Movimentos Sociais
(CMS), Fórum Social Mundial (FSM), agendas como as pautadas pelas Centrais
Sindicais, movimentos de juventude, feminista, LGBT, comunitário, ambiental,
dentre outros.
Não vislumbro saídas isoladas
para o movimento negro, parte fundamental das reivindicações de todos os
segmentos dos movimentos sociais é econômica, diz respeito a quem se destina a
maior fatia dos recursos públicos e a grande concentração de riquezas nas mãos
de poucos. O movimento negro, de forma organizada, deve se fazer presente na
luta para mudança na política econômica, substrato de todas as batalhas, e
ajudar construir um país justo e sem racismo.
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