A Vida na escola e a Escola na vida: contribuições para o estudo sobre as experiências dos afrodescendentes em Santa Catarina no século XX

1.Introdução

Este texto faz parte de um pequeno balanço há muito cobrado pelos colegas de nossas atividades de pesquisa e orientação. Afinal, ao longo dos últimos dez anos foram quase quatro dezenas de trabalhos acadêmicos desenvolvidos no âmbito do Grupo de Pesquisa Multiculturalismo: Historia, Educação e populações de origem africana do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina – o NEAB/UDESC.
Das varias possibilidades resolvemos selecionar dois estudos escritos nos últimos sete anos abordando experiências de afrodescendentes na escola da vida e no quotidiano da escola em Florianópolis[1] e Criciúma[2]. Gostaríamos de ter incluso um estudo sobre Lages[3], mas exigüidade do tempo e os limites de tamanho do texto nos obrigaram a eliminá-lo.
Um parágrafo, três termos chaves que norteiam o conjunto dos trabalhos - quotidiano, experiência e afrodescendência - e que expressam os esforços de dezenas de pesquisadores brasileiros para renovar os estudos sobre a historia das populações de origem africana no Brasil. Em primeiro lugar, o quotidiano. Antes visto por uma determinada literatura como lugar da “mesmice”, do repetitivo, em uma palavra: do a-histórico, os temas relativos a vida de todo dia foi recuperado pela historiografia como um lugar privilegiado para tornar visível nos esforços para sobreviver da melhor maneira possível, nas condições mais adversas, os significados políticos, contra hegemônicos das pequenas lutas dos desclassificados urbanos e outros grupos tradicionalmente oprimidos.[4]
Em segundo lugar, experiência. Termo que nos remete a obra do historiador e ecologista inglês, Edward Palmer Thompson que nos confrontos com leituras estruturalistas da década de 1960, escolheu explorar as praticas dos trabalhadores de sua velha Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, para dela apreender a capacidade daqueles de aprender na luta, elaborar essas experiências na sua cultura herdada ou compartilhada e agir . Thompson nos chama atenção para a necessária sensibilidade para perceber os significados atribuídos pelos sujeitos as suas próprias experiências como parte vital do processo de reconstituição de suas historias.[5] Esta noção foi utilizada a partir da década de 1980 por parte dos historiadores da escravidão africana no Brasil para resgatar e compreender os sentidos das praticas quotidianas dos cativos, libertos e homens livres “de cor”.[6]
O termo afrodescendência, por sua vez, expressa uma longo debate tanto com o que existe de melhor na historiografia acadêmica sobre as experiências dos africanos e seus descendentes no Brasil escravista e sua critica a uma visão racialista desta historia por parte dos intelectuais de origem africana. Como bem indicou Hebe de Mattos em As Cores do Silencio, a racializacao das populações de origem africana no Brasil é recente e fruto do esgotamento das antigas formas de classificação social e da cultura escravista que as instituía. Igualmente, de acordo com Lílian Schwarcz, ela expressa a crescente popularidade a partir da segunda metade do século XIX dos discursos racistas científicos originados na Europa. Discursos que reelaborados para as tristes condições do pais, forneceu em um quadro de crescente questionamento da instituição escravista, de uma reatualizacao das hierarquias sociais gestadas no cativeiro.[7]
A cor associada à classificação social possui matrizes historicamente distintas ao longo da historia brasileira o que nos impede de lançar mão dela indiscriminadamente para qualquer tempo e espaço sem corremos o risco de anacronismo.
Por outro lado, como bem nos lembrou Kwame Appiah, grande parte do discurso pan-africanista tem origem nas mesmas fontes nacionalistas que deram origem a varias formas de racismo, xenofobia e intolerância[8], na medida em que mobiliza os mesmos valores centrais no nacionalismo europeu do séc. XIX : historia, religião, língua, cultura e raça.[9]
A pergunta que precisamos nos fazer é se precisamos continuar presos aos marcos intelectuais do século XIX. Se necessitamos imaginar a solidariedade entre africanos e seus descendentes como sendo natural e fruto de uma atribuição de valores morais a determinados grupos raciais?[10]
Para fugir do anacronismo e do racialismo optamos por utilizar as categorias de população de origem africana e afrodescendentes como ferramentas de natureza descritiva para apreensão de realidades pretéritas.Elas nos permitem nos referir a totalidade dos africanos e seus descendentes sem a pretensão de ser expressão de identidade étnica ou uniformidade cultural. Ela nos permite discutir sobre fenômenos de longa duração que afetaram e afetam africanos e seus descendentes no pais. Afrodescendência, ao contrario da negritude, não remete a uma identidade de natureza racialista e totalitária. Ela enfatiza a pluralidade de experiências da diáspora africana no tempo e no espaço.
Os estudos de Cristine, e Eclea foram tentativas de explorar as praticas quotidianas dos catarinenses de origem africana, buscando percebê-los como modos plurais de ser e estar no mundo.


2. Memórias de mulheres em Florianópolis colhidas por Eclea Ribeiro.

O trabalho denominado Negras Memórias de Mulheres Negras[11] tem por objetivo colaborar na recuperação da trajetória histórica de mulheres afrodescendentes na cidade de Florianópolis. A intenção é através da análise de suas trajetórias de vida delinear suas formas de resistência e assimilação, negociação e conflito no cotidiano da capital catarinense na segunda metade do século XX.[12]
Destes estudo coletei uma reconstrução de vidas de mulheres afrodescendente maravilhosas que nos permite vislumbras aspectos e expectativas da vida da população de origem africana em Florianópolis.
A primeira personagem em tela: Dona Esmeralda Helena Pereira Soares[13], nascida em 1918. Hoje vivendo no Rio de Janeiro[14], morou grande parte de sua existência na rua General Vieira da Rosa, uma das vias de acesso do celebre Morro da Caixa, pertencente ao Maciço Central e uma das principais comunidade de afrodescendentes na capital catarinense
Através do estudo de sua vida nos adentramos ao mundo das populações de origem africana, suas expectativas de ascensão, sua relação com as elites e estratégias de sobrevivência no pos-abolicao. Dona Esmeralda, por exemplo, filha de um pedreiro e de uma cozinheira, estudou no Grupo Escolar Diocesano São José até a 4º série. Se a profissão dos pais é indicativa de uma continuidade das condições gerais de vida entre o séc. XIX e o XX, sua matricula em uma escola é indicativa das expectativas de um futuro melhor para os filhos através da instrução. Por sinal, segundo Norberto Dallabrida este era um dos principais objetivos daquela instituição de ensino criada em 1915 pela Igreja Católica.[15]
No entanto, para alem da educação centrada na docilizacao dos corpos característico da educação jesuítica, outras praticas pedagógicas atuavam na formação dos jovens afrodescendentes:.
“A minha mãe... ela funcionava muito com a vara de marmelo, a hacha de lenha, hacha de lenha, vara de marmelo. Apanhei também de corda (...[16])

O aprendizado de respeito aos pais e atendimento das expectativas familiares passava pelo uso corrente de castigos físicos como instrumentos de inculcacao das regras. Herança, talvez, de uma sociedade luso-brasileira envolvente, onde a violência nas relações sociais era comum, principalmente no que diz respeito a perpetuação da rede de hierarquias sociais.
Suas lembranças ainda nos permite vislumbrar pequenas imagens do quotidiano de uma casa da encosta do Antão. Casa de madeira, poucos moveis, um baú, uma tarimba feita pelo seu pai e um colchão de palha de milho. As cobertas eram mantas feitas de retalhos e esteiras[17]. Fogão de lenha, limpo com sabão feito pela sua mãe. A chapa do fogão tinha que brilhar, ser um espelho. Nosso bombril era cinza e limão...
Em uma época em que o centro da cidade era abastecido pelo reservatório localizado nos altos da General Vieira da Rosa Morro da Caixa[18], para os moradores do Morro, o banho era de baciar.
“Quando a minha mãe queria uma água toda especial, nós descíamos do lugar onde eu moro hoje e vínhamos pegar água aqui na rua Bittencourt atualmente, carregávamos a lata na cabeça.”

A rua do que fala D.a Esmeralda era a General Bitencourt, antiga Tronqueira, e onde existia uma bicentenária fonte d’água. Na cidade moderna capital do estado que se imaginava o mais europeu do pais, reservava aos descendentes de africanos e outros desclassificados urbanos, as condições de vida próximas ao período colonial.[19]
D.a Esmeralda, ao contrario das irmãs parecia se apaixonar por situações que fugiam as regras. De acordo com Ecléa Ribeiro, ao ser informada de que não deveria passar rua da China, como era conhecida uma das zonas de prostituição, ao avistar um policial em frente a Catedral Metropolitana, por curiosidade indagar a um policial onde ficava a referida via publica. Ao ser questionada por ele o que queria com esta rua, respondeu-lhe:
“Não, porque a minha mãe diz que não é pra passar na rua da China e eu não quero passar na rua da China e é por isso, que eu estou perguntando onde fica..”.
Após distanciar-se dos seus irmãos e distrair o policial, dirigiu-se para o afamado local: “Aí eu fiquei conhecendo a rua da China.” Segundo Ribeiro, ela “viu mulheres de vestido longo, flor no cabelo, unha dos pés e das mãos pintadas de vermelho, achou muito lindo e voltou pra aula. Na hora do recreio conversou para as amigas que quando crescesse ia ser ‘China’”[20]. O resultado é imaginável. Foi proibida de andar com as colegas e o pai, Seu Augusto que a época trabalhava na construção do Hotel La Porta:
“O meu pai (...) ao saber: Que foi Samarica?
Seu Augusto! Olha seu Augusto, nós precisamos dar um jeito nessa rapariga, essa rapariga vai estragar as raparigas de casa e as raparigas do vizinho. (....) É.... levei aquele exemplo que não preciso repetir, uma sessão de vara de marmelo, foi terrível.
E outra ocasião por um vintém e uma rapadura dançou na frente da Catedral, rodando a saia e deixando aparecer a metade do joelho, ao som das palmas das amigas que cantavam.
“A Esmeralda não é capaz, jogar o peão no chão oi.
Lá vai, lá vai, lá vai, lá vai, vai o peão no chão (....)”

Alem dos castigos de praxe seguiu-se um discurso indicativo das relações e expectativas de comportamento entre afros e as elites brancas. Diz a mãe:.
“O rapariga estepor, nêga da canela seca, o que tu fez lá na porta da Catedral, seu estepor, sabendo que eu como da mesa dos brancos, vivo da casa dos brancos, trago pirão dá....pra dentro da casa, da casa dos brancos....Agora óh que é que tu faz, vergonha pro teus irmãos, tuas irmãs que tá na escola normal, sua nêga estepor. O que é que tu fez sua nêga estepor?

Parece que toda estratégia de sobrevivência da família passava por uma solidariedade vertical que os unia em uma relação assimétrica com as elites brancas. O comportamento curioso, anárquico de D.a Esmeralda, colocava em risco as táticas para driblar as difíceis condições da vida de todo dia.
Após ser pega furtando carne em casa, fugiu e saiu a perambular pelas ruas da cidade. O castigo aplicado nos permite imaginar quão a estava em vigor uma antiga cultura de punição. Diz Ribeiro, “foi nesta peraltice que a mãe a levou para que o delegado lhe desse um “exemplo”.O delegado se recusou alegando que era coisa de ‘rapaz pequeno’.”[21] O interessante é que a autoridade policial não questionou a pratica, mas apenas considerou desnecessária . Este incidente indica a permanência de castigos corporais aplicados a pedido, muito comum no século XIX, principalmente, para tratar de cativos desobedientes.
A outra solução pensada pela mãe , também nos remete aos usos da centúria anterior. Buscou uma família para levá-la, pra onde quisessem levar. Eu caí primeiramente nas mãos do capitão Amílcar Dutra de Menezes,a época diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda, o extinto DIP e lá se foi Esmeralda para a Cidade do Rio de Janeiro[22].
A pratica nos fez lembrar dos processos de tutoria na qual um parente ou mesmo autoridade judicial poderia responsabililzar um cidadão pela guarda de uma criança . Pratica que nos remete a um tipo de relação em membros das elites possuíam responsabilidades para com os seus dependentes e muito estimulada na época da Abolição da escravatura.
Também chama atenção a proximidade entre diferentes autoridades e uma pessoa pobre e de origem africana. O domínio dessa relações em Florianópolis, no meio das camadas populares é denominado “conhecimento” .
Conhecimento é o que não faltava e celebre e recetemente falecida Nadir Vieira Oliveira, a Dona Didi[23], por muitos muitos anos considerada primeira dama do samba em Florianópolis. Natural da cidade de Biguaçu , na Grande Florianópolis, nasceu em 1922 e cedo (aos nove anos) foi morar na rua Vitor Meirelles, sob a tutela de Adauto Vieira.
Criada para ser criada[24], em sua etrevista encontramos ecos das relações assimétricas assentadas em um passado escravista, a época, recente. Ou como afirma Ecléa Ribeiro, meninas que começavam a trabalhar cedo, nas casa de família das elites onde eram moldadas conforme os padrões estabelecidos[25]. .
“Os pais entregavam a gente na família, a família era responsável pela gente como se fosse filho, eles tinham era... não podia sair sozinha, não podia curricar nada (...) na época pra sair tinha que ir acompanhada por uma senhora (....).”

No século XIX, meninas cativas, libertas ou livres que moravam “da porta para dentro”, como se dizia, se distinguiam das lavadeiras, quitandeiras e outras mulheres que viviam de suas agencias, buscando nas ruas da velha Desterro, no seu “comercio de vintém”[26], arrancar na dura vida de todo dia algo para manter a si e aos seus. A aquelas meninas, bordadeiras, costureira, damas de companhia, não era licito caminhar sozinhas.[27]
Dona Didi . como D.a Esmeralda guarda n lembrança a rígida educação dos pais.

“(...) a criação foi outra, não é como hoje que vai onde se qué, se não qué, não vai, fazem o que bem entendem, não, na minha época, não foi assim, respeitar o que os pais diziam, era uma lei né, então a gente obedecia muito (...).”

Segundo Ribeiro, Dona Didi era neta de cativo de nação Angola, filha de um estivador no Porto do Desterro e de uma lavadeira, estudou a noite ate a quarta serie.Morou na Francisco Tolentino, no velho Bairro da Figueira, casou-se, tornou-se dona de pensão e cozinheira, no tempo em os cursos universitários eram oferecidos no centro da cidade. Nesta tarefa construiu uma rede relações e travou contatos com inúmeros estudantes e descobriu seu prazer : gostar de todos, cuidar de todos, sempre trabalhando e estar rodeada de gente.
Por sinal, Dona Didi partilhava de um catolicismo luso-brasileiro que se associava a presença de irmandades leigas, também característico da Desterro do séc. XIX. Não por acaso se considerava uma católica legítima, por ter pertencido a Irmandade Senhor dos Passos, do Rosário e São Benedito, da Ordem Terceira Franciscana e da Congregação Santo Antônio. De acordo com Ecléa Ribeiro, mesmo com a saúde abalada mesmo após ter sido vítima de derrame, ainda encontra forças para fazer caridade. “Ainda ontem, mesmodoente, ontem fiquei o dia todo. Ontem foi o dia de distribuir o rancho dos pobres.. Brincando com a receita para viver se envelhecer, afirmou :
“É paz de.. paz de espírito, quero bem a todos né? Tenho muito amor pra dar como eu digo sempre. Sempre sou muito amorosa a todos, me apego muito as pessoas.Então...Ah, isso é uma paz de espírito que a gente tem né, de não tá se incomodando. Desejando sempre bem aos outros, que é a melhor coisa que a gente faz.”

Diferentes das atribulações de Dona Esmeralda, Dona seguindo um caminhão mais trnaquilo, dominando e seguindo as regras,, “criando os filhos dos outros, a vida toda no fogão, cozinhava muito pra fora, cozinhava em casamentos, banquetes”, fora isso é era a correria da mais antiga escola de samba, fundada em 1949 e por ela batizada de Protegidos da Princesa.. Como informou:
“(....) Era assim, minha trajetória, sempre foi trabalhar.Eu adoro trabalhar, eu adoro cozinhar né.”
“É assim que a gente tem que ver, saber, filha! Que a gente no mundo não é nada. A gente dura tão pouco. Eu durei muito, tô com setenta e seis anos! tô com setenta e seis anos! Então tenho durado muito né e já fiz o que tinha que fazer. agora estou aqui só tempiando.”

Por tudo isto, tornou-se uma celebridade local, recebendo inúmeras homenagens e honrarias. A Este respeito comentou:
“Não.A gente nunca receb todas as homenagens, nunca recebe que a gente merecia mesmo de verdade.Até dos próprios parentes que a gente faz tudo e no fim sempre tem um que é mais apegado, outros já se pode dar um chute por fora eles dão. Mas num... eu relevo, nada disso, eu quero é paz de espírito, como disse tendo paz de espírito a gente tem tudo.”

3.Memória de normalistas de Criciúma por Cristine Crispim

A segunda monografia de Cristine Crispim escrita em 2000, tem como objetivo discutir a presença dos afro-descendentes no município de Criciúma, resgatando marcas de suas trajetórias históricas, especialmente, as experiências de mulheres, normalistas afrodescendentes e suas perspectivas de ascensão social vinculadas ao exercício do magistério na década de 1960, época em que surgiram as primeiras Escolas Normais em Criciúma..
Distante 146 quilometros em direção ao Sul do Estado de Santa Catarina, a acidade e seu desenvolvimento econômico estão associados a riqueza do carvão e as grandes guerras mundias que produziram a demanda pelo minério. Segundo Cristine Santiago, a partir da década de 40, Criciúma, transformou-se numa grande vila operária, surgindo bocas de minas em vários locais do município.

Onde se instalava uma mina, centenas de pessoas para lá se encaminhavam, procurando emprego e condições de sobrevivência. Logo um bairro formava-se, geralmente identificado com o nome da companhia mineradora dona do local. Assim surgiram os bairros: Próspera, Metropol, Mina do Mato, Boa Vista, Operária Velha ou Vila Operária, Operária Nova, entre outros. [28]

De acordo com Santiago, para a historigrafia local, os afro-descendentes começaram a chegar em Criciúma a partir de 1905, e distribuíram-se pelas vilas operárias, ou nas e proximidade da região central da cidade. Para ela, na rua Henrique Lage, um dos mais importantes logradouros, os afro-descendentes conviviam com os descendentes de origem italiana, alemã, portuguesa, que ali também residiam.[29]
As famílias afro-descendentes viviam em situação de pobreza, As mulheres como escolhedeiras nas minas de carvão, empregadas domésticas, lavadeiras e marmiteiras, serviços pouco valorizados, mas que representava a garantia de sobrevivência das famílias. Os homens trabalhavam nas minas, além de mineiros, eram motoristas, apontadores, serventes e vigilantes.
Afirma Santiago que com a diversificação e o crescimento do ramo industrial na cidade na década de 1960, “..os homens afro-descendentes, passavam a ocupar outros cargos, como ode almoxerifes, escriturários, ajudantes de serviços gerais e funcionários públicos e as mulheres ocupam profissões no comércio e na indústria e, algumas passam a investir na educação, tornando-se professoras”.
Sobre elas selecionamos uma entrevista interessante. Cristine Santiago investigou uma das primeiras professoras de origem africana de Criciúma. Dona Maura, ela própria uma migrante, parece concordar com a memória hegemônica local quanto a origem dos afro-criciumenses :
“Os negros que vieram para Criciúma os negros aqui de Criciúma, na verdade nenhuma era daqui de Criciúma. Eles foram, eles vieram para Criciúma porque? Eles vinham em busca de serviço, eles eram originados de Jaguaruna, daquela zona de Tubarão e de Laguna. Então eles vieram vindo e se instalando aqui, vieram alguns também daquela zona de Araranguá.”

Estas cidades compõem uma das mais antigas regiões ocupados pelos luso-brasileiros e povos de origem africana e seus descendentes, situada ao sul de Santa Catarina . Considerados “fortes” e “trabalhadores” , estas pessoas deslocaram-se para a cidade “... buscando serviço, pois estava sendo construída a estrada de ferro e por causa daí eles queriam para o trabalho pesado.(...). Vieram “..para construir a Estrada de Ferro. Logo após a Estrada de Ferro, eles também vieram prá trabalhar na Minas de Carvão”.
No final dos anos 1950, a professora aportou em Criciúma vinda da cidade vizinha de Tubarão : “Nos chegamos aqui em 58, a Clotilde em 57 veio dar aula no Coelho Neto, como professora normalista, foi a primeira normalista negra a pisar no solo de Criciúma. E eu vim então em 1958, que fui a segunda.”.
Diz Dona Maura que a simples presença das professoras causava grande impacto na comunidade. “ Nós duas dávamos aula no (Grupo Escolar) Coelho Neto, claro que provocávamos discussões nas famílias, que então não acreditavam que um negro fosse, pudesse ser normalista, porque estudo era pago, era muito caro.” E o curioso é que elas optaram, entre as escolas existentes, pela mais modesta. Em suas palavras “... um grupo (escolar)[30] bem pequeno e foi feito, de madeira, todo ruim, sem pátio, sem até instalação sanitárias. Ele era péssimo!
Assim justificou a escolha:

“Nós fomos as primeiras normalistas que viemos de Tubarão, e quando nós chegamos aqui no Coelho Neto... Eu me lembro bem do Coelho Neto e do Lapagesse, que era da elite. E nós fomos para o Lapagesse porque não quisemos ir, porque se nós quiséssemos tinha vaga.”

Segundo a professora, não bastava ter um diploma era preciso algo mais para fazer valer o investimento familiar na educação das filhas.

“ O pessoal, com eu vou te dizer, ficaram um pouco admirados de verem duas negras dando aula no Coelho Neto.”
“Porque eles acharam que eu ia dar aula numa escolinha que tinha aqui no (bairro) Santo Antônio. Uma escolinha assim... Eles acharam que era muita coisa prá mim. Eu vim para o Coelho Neto. Eles ficaram admirados.”

A custa de muito trabalho e dedicação as professoras conquistaram o reconhecimento das comunidades envolvidas com o grupo escolar, “... a gente teve bastante aceitação e, modéstia a parte, a gente dava conta bem do recado...”. Alem disso, que a preocupação com o desempenho escolar das crianças, levava-a estender o trabalho pedagógico para alem da sala de aula.

“Eu me lembro que depois eu comecei dar conta para as outras turmas e eu dava aula extra classe, os alunos vinham na minha casa prá estudar, quando eles não entendiam, e os pais, assim, gostavam bastante.”

Em seu depoimento, chama a atenção a aparentemente contraditória sensação de pertencimento e distanciamento em relação aos demais afrodescendentes da localidade.

“Os outros negros nos olhavam com receio e desconfiados, achavam que a gente queria ser melhor do que eles. Se recolhiam um pouco, não andavam com a gente. Nós tivemos que fazer um trabalho de aproximação, de chegar por perto, ficar amigo, porque eles tinham uma certa desconfiança com a gente.”

Não bastava, ao que parece, a cor escura para ser reconhecido como um igual. Aqueles que possuíam os sinais de distinção da elite criciumense (oficio e educação) , em um universo de migrantes mineiros e outros trabalhos braçais, precisaram aprender as regras dos afros locais, “aproximar-se”, de modo a vencer as barreiras que cultura hegemônica e a experiência dos afros instituía. Falmos de um ambiente em que, segundo a professora “.. as outras mulheres que não eram professoras, eram empregadas de cozinha, tinha ainda um número pequeno de mulheres no comércio(...). A maioria, a nata, eram professoras. Todas brancas. A mulher negra, quando estudava, era professora, fora disso, era doméstica.”
Parece-me que Dona Maura era uma professora dotada de um profundo sentimento de solidariedade para com os seus “iguais”, a ponto de fazer uma distinção precisa entre o lugar e os papeis oriundos da sua condição de professora e a situação dos afros da cidade:
“eu não senti esse preconceito, essa coisa. Tinha preconceito, porque eu não posso tratar da minha pessoa. Eu tenho que tratar dos negros em geral. Tá entendendo? Então eu não posso me vestir de orgulho e começar a dizer bobagens, que não tinha preconceito, porque tinha.”

Das memórias da professora, igualmente, salta aos olhos a continuidade de uma visão que define um lugar especial para as pessoas letradas, certamente inspirada na tradição iluminista e no uso do seu transito na cidade em prol de melhorias na condição de vida da população de origem africana em Criciuma :
“A Clotilde (Lalau)[31] foi um baluarte. Ela levou a raça negra nas costas. A Clotilde foi baluarte para a raça negra. Ela carregou, ela mostrou, chamou o negro para si, mostrou prá ele que não tinha de se envergonhar da raça que ele tinha.”



3. Considerações finais

Dois estudos, três entrevistas, um milhão de possibilidades de investigação . Nas falas dessas mulheres afrodescendentes a vida marcada pelas limitações estruturais de um pais fruto da colonizacao e escravidao africana, não é capaz de ser reduzida a reflexos destas condiconantes. Cada uma delas foi fazendo opções pelo caminho, cada uma delas nos leva as possibilidades abertas aos descendentes de africanos no século XX. São mulheres catarinenses que buscaram, cada uma a seu modo, viver da melhor maneira possível . Em todas a experiência de migração. Uma reproduzindo um movimento tradicional que guardava similitudes com o tempo do cativeiro – ser criada para ser criada. Outra explorava as possibilidades abertas pela Era Vargas – a instrução. Entre elas, alguém que procurou ser feliz do seu modo, feito Cruz e Sousa, foi buscar na agitação carioca um lar para realizar seus sonhos. E parece ter encontrado.
Ecléa Ribeiro e Cristine Santiago nos ensinam que estas historias fantásticas podem ser reconstituídas, e que temos muito a aprender com elas, desde que tenhamos sensibilidade, vontade e um gravador na mão... Ao pensar em todas estas vidas, tendemos a trazer e aplicar para o contexto brasileiro, a sentença que o grande etnólogo malines Hampate Ba , formulou para pensar a importância dos sábios em Africa, “cada ancião que morre é uma biblioteca que fecha .


[1] RIBEIRO, Eclea Mara. Negras memórias de mulheres negras: Um estudo sobre experiências de mulheres afrodescendentes em Florianópolis no século XX. Florianópolis, 1998. Monografia de conclusão do Curso de Especialização em Historia Social no Ensino Médio e Fundamnetal, Universidade do Estado de Santa Catarina.
[2]SANTIAGO, Cristine Crispim. Memórias de Normalistas. Experiências de professoras afrodescendentes em Criciúma na década de 1960.. Florianópolis, 2001. . Monografia de conclusão do Curso de Especialização em Historia Social no Ensino Médio e Fundamental, Universidade do Estado de Santa Catarina.
[3] CARVALHO, Andréa Candido de. Negros em Lages: Um estudos de expereincias de afrodescendentes no planalto serrano no séc. XX.. Florianópolis, 2001. Trabalho de Conclusão de Curso de Historia, Universidade do Estado de Santa Catarina.
[4] Ver a obra magistral de DIAS, Maria Odila Leite da Silva.Quotidiano e poder. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. Ainda, GINZBURG, Carlo . O queijo e os vermes: O quotidiano de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1986; CERTEAU, Michel de. A invenção do quotidiano.
[5] Ver em especial, A formação da Classe operária inglesa.Rio de Janeiro: Paz e Terra; Costumes em comum .Estudos sobre a cultura popular tradicional.São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

[6] Ver : Maria Cristina Wissembach.Sonhos africanos, vivências ladinas.São Paulo: Ed. Hucitec, 1998. p.28 Ver ,também..Maria Odila Dias. Quotidiano e poder. São Paulo: Brasiliense, 1984; Sidney Chalhoub. Visões da Liberdade.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990; MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico. São Paulo: Edusp, 1994; Hebe Maria de Mattos. Das cores do silêncio.Rio de Janeiro Janeiro: Nova Fronteira, 1998; Wilson Roberto de Mattos. Negros contra ordem. São Paulo:1999. Tese de doutorado em Historia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

[7] SCWARCZ, Lílian . O espetáculo das raças. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1993. Um outro estudo que tornou-se fundamental na historia do racismo brasileiro foi a dissertação de mestrado de AZEVEDO, Célia Maria Marinho .Onda negra, medo branco. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
[8] APPIAH, Kwame. Na casa do meu pai.A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 1996. Ver em especial o primeiro capitulo
[9] Uma bela reflexão sobre o nacionalismo pode ser encontrado em HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990
[10]. Esta é a grande questão perseguida por Kwame Appiah em Na casa do meu pai...
[11] O estudo de Ecléa Ribeiro é dividido em três partes. Na primeira a autora realiza uma revisão bibliográfica sobre a literatura histórica acerca das populações de origeam africana em Florianópolis. Na segunda busca construir o cenário dessa vidas – a capital catarinense na primera metade do século XX. Por ultimo, Ribeiro visivelmente inspirada em sua xará Ecléa Bosi de Memórias de Velhos, produz uma interpretação da vida de suas informantes através de uma seleção de fragmentos de entrevistas a ela concedidas.
[12] RIBEIRO, E. Negras memórias de mulheres negras...p.5
[13] SOARES, Esmeralda Helena Pereira, 1918, em 08/04/98, gravada por Ecléa Mara Ribeiro
[14] Segundo informações da Prof.a Jeruse Romão coletadas em 20.02.2005.
[15] DALLABRIDA, Norberto. Colméia de virtudes: O Grupo Escolar Arquidiocesano São Jose e a (re)produção das classes populares. In: DALLABRIDA, Norberto (org) Mosaico de escolas: Modos de educação em Santa Catarina na Primeira Republica. Florianópolis: Cidade Futura, 2003. p. 282
[16]
[17] RIBEIRO, Ecléa . Negras memorias de mulheres negras. p.40
[18] O reservatório do Morro do Antão como era conhecido foi inaugurado na administração do Governador Gustavo Richard em 1910. RAMOS, Atila Alcides. O saneamento em dois tempos Desterro e Florianópolis. Florianópolis: CASAN, 1983. p.12
[19] A Tronqueira no século XIX era um dos mais importantes bairros populares de Desterro, antiga denominação de Florianópolis. Lá estavam localizadas olarias, curtumes, açougue, bares e duas das principais fontes de abastecimento d’água da cidade. Ao logo do rio da Bulha, hoje canal da avenida Hercílio Luz, margeavam as lavadeiras e os cortiços que as abrigavam. Todo este universo passou a ser atacada pelas elites republicanas entre o final do séc.XIX e a primeira metade da centúria posterior. O bairro foi desmantelado para ser sede de elegantes residências no primeiro boulervard da capital catarinense. CARDOSO, Paulino de Jesus F. Negros em Desterro: Experiências de populações de origem africana em Florianópolis (1860-1888) . São Paulo, 2004. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
[20] RIBEIRO, Ecléa. Negras memórias de mulheres negras. p.45
[21] RIBEIRO, Ecléa . p.54
[22] Após uma temporada nas mãos do “tutor”, foi apresentada ao lendário prefeito de Duque de Caxias, Tenório Cavalcante e sua família, com quem morou e ate tornar-se professora e técnica em enfermagem..
[23] OLIVEIRA, Nadir Vieira, 1922, em 29/04/98, gravada por Ecléa Mara Ribeiro
[24] Na perfeita definição de Cristina Scheibe Wolff . Depoimento ao autor em marco de 2004.
[25] RIBEIRO, Ecléa .Negras memórias de mulheres negras. p.63
[26] Feliz expressão de Maria Odila Leite da Silva Dias em Quotidiano e poder...
[27] CARDOSO, Paulino de Jesus. Negros em Desterro.... Ver em especialmente o capitulo III – Laços de família.
[28] A demanda por carvão fez com que a população de Criciúma saltasse de 27.752 habtantes em 1940, para 50.854 na década seguinte.
[29]
[30] Segundo Norberto Dallabrida , O grupo escolar era formado a partir da reunião de varias escolas urbanas e distinguia-se por proporcionar ensino primário graduado, formado por classes homogêneas e vários professores. Os grupos surgiram em São Paulo e foram introduzidos em Santa Catarina através da Reforma do Ensino em 1911, sob coordenação do educador paulista Orestes Guimarães, no Governo Vidal Ramos.DALLABRIDA, Norberto. Mosaico de escolas. p.287-288
[31] Professora que atuou em Criciúma com a entrevistada e tornou-se nos anos 1970 e 1980, uma das grandes referencias do Movimento Negro do sul de Santa Catarina.

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