Paulino Cardoso. HARVARD: NÃO CHORES POR MIM, ESQUERDA BRASILEIRA!!!. Blog Brasil 247, 19 de abril de 2025.
Quando ouvi o chororô dos brasileiros pelos cortes provocados por Donald Trump ao orçamento da Universidade de Harvard, traduzido como um ataque ao conhecimento, logo me veio em mente a Madonna, no musical Evita (1996), dirigido por Alan Parker, tendo Antonio Banderas como nosso eterno comandante Che Guevara. Fiquei pensando, até quando seremos caixa de ressonância do Partido Democrata?
Minha natural ironia, cessou no momento em que me caiu, via redes sociais, uma convocatória de um interessante evento, promovido pela prestigiosa universidade estadunidense: The ALARI IV, Continental Conference on Afro-Latin American Studies, entre os 22 e 24 de Julho de 2026, em Cali, Colômbia.
Antes de tudo, devo confessar que este texto tem a inspiração do professor José Kobori, que em entrevista recente ao Leonardo Attuch, no Canal Brasil 247, comentou que por orientação da esposa, por sinal, psicóloga, resolveu contar sua história, senão as pessoas ficariam com apenas uma versão. A minha companheira, Cristiane Mare, afirma que é preciso fazê-lo para manter viva nossa inglória luta pela memória.
Aos que estão chorando o corte de recursos da Universidade de Harvard, me veio a necessidade de contar experiências por mim vividas antes de minha queda em 2018, que ilustram o papel da instituição acadêmica e não só ela, como instrumento de softpower estadunidense, chave na formação de lideranças alinhadas com os interesses do império.
Informação importante, depois dos anos 1960, com o avanço do movimento pelos direitos civis, os intelectuais brancos perderam o controle, ou pelo menos a legitimidade do discurso sobre relações raciais nos EUA. Para minha geração dos anos 1980, além dos pais fundadores como W.E. Dubois, Kwamme Nkrumah, tínhamos mentes brilhantes como Angela Davis, Kimberlé Crenshaw ou Cornel West para nos educar.
Uma vez perguntei a Sheila Walker, antropóloga estadunidense e uma das mais importantes estudiosas da diáspora africana nas Américas, como vocês lidaram com o racismo inerente às instituições acadêmicas dos EUA? Ela disse, saímos das associações dos brancos e criamos as nossas.
Este, por sinal, foi o sentido da criação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, ABPN, idealizada em um final de tarde em minha casa, depois de mais um frustrante Encontro Nacional de História da ANPUH, em Florianópolis, 1999. Um ano depois fundamos a entidade como produto do Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, CBPN, em Recife, 2000.
Quatro anos depois, no CBPN de São Luiz do Maranhão, criamos o Consórcio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, CONNEABS. Verdade seja dita, antes dele, nós já havíamos organizado a Articulação Nacional de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, quando vários de nós participamos do Seminário Internacional Multiculturalismo e Políticas de Ação Afirmativa, organizado em 1996 pela Fundação Cultural Palmares, então, dirigida por Dulce Pereira e como principal palestrante, o presidente Fernando Henrique Cardoso. Entenderam? Ação afirmativa não era pauta do movimento negro brasileiro.
Além disso, nós introduzimos a ideia de um consórcio de NEABS, em uma reunião de trabalho organizada pelo MEC na Universidade Federal de São Carlos,em 2003, como parte de uma estratégia de implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais, sistematizada por Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, nossa primeira representante no Conselho Nacional de Educação.
Em 2004, começamos a multiplicar os núcleos de estudos afro-brasileiros. Vocês deveriam ver a surpresa do coordenador do Centro de Estudos Africanos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais,EHESS na sua sigla em francês, quando estive em Paris um ano antes para apresentar a proposta e testar possibilidades de apoio. Era como se as amebas houvessem saltado da lente para explicar ao pesquisador como fazer pesquisa.Detalhe, apenas passei por lá, vindo do I Encontro de Intelectuais Africanos e da Diáspora, realizado em Dacar, Senegal, co-patrocinado pelo Coronel Muammar Kadafi, parte do seu sonho de um Estados Unidos da África.
Os NEABS, pelo menos os criados a partir dos anos 1990, agregavam toda uma geração de intelectuais que optaram por uma carreira acadêmica e que enfrentaram de diferentes formas o racismo presentes em nossas universidades, agências de fomento e associações acadêmicas. Nossa intenção era transformar tais espaços, em atores na luta antirrascista na sociedade civil, e por sua institucionalidade, na formulação e coordenação de políticas públicas .Da parceria com sujeitos bem posicionados no Ministério da Saúde, Ministério da Justiça e Ministério da Educação, saíram as primeiras experiências de políticas afirmativas para populações negras no Brasil.
O que isto tem a haver com a Universidade de Harvard? O sentido e objetivo da ação universitária. Em 1991, como jovens pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nós fundamos o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da PUC. Militantes mais antigos nos cobraram a participação nas lutas antirracistas da cidade e respondemos, então, que nosso campo de luta era a academia e nossa ferramenta de luta era a teoria. Banhados em Frantz Fanon e Amilcar Cabral, nós queríamos uma produção de conhecimento comprometida com a emancipação.
Ou seja, aquele movimento do qual fizemos parte não tem absolutamente nada a ver com a tal afrolatinidade. Esta última é fruto de uma estratégia de intelectuais brancos para retomarem o controle e/ou hegemonia da temática das relações raciais pelo menos na América Latina. Sim, a partir de um centro de estudos de afro-americanos de Harvard, os intelectuais brancos inventaram uma nova categoria/nicho acadêmico, os afro latino-americanos. Então, curiosamente, dos EUA até a Argentina, passando pelo México, Colômbia e outras bandas, os líderes acadêmicos deste campo, são todos brancos com seus pretinhos de estimação ( afinal,representação importa). Detalhe,quem financia....Ford Foundation.Mesma organização que contribuiu para eventos da ABPN, Marcha de Mulheres Negras e muitas outras associações das pautas wokes em nosso país e além dele.
Aqui um esclarecimento precisa ser feito. Com o desaparecimento da União Soviética, uma parte de nós, socialistas, nos sentimos derrotados e sem referências sobre a possibilidade de pensar alternativas ao capitalismo neoliberal. Para terem ideia, a primeira edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre só aconteceu em 2001 e, neste meio tempo, sofremos três gigantescas derrotas eleitorais (1989,1994,1998).Consequentemente, fomos presas fáceis da alternativa liberal tão bem representada por Bill Clinton e Barack Obama e suas fundações como Ford Foundation, Fulbright , USAID, NED, Open Society e Konrad Adenauer. Lentamente, fomos transformando movimentos sociais em ONGs e abandonando o radicalismo de esquerda, por natureza antissistema, para aderir às democracias liberais, multiculturais, reformadoras do capitalismo.
Não deixa de ser interessante que naquele fatídico ano de 2018, estávamos as duras penas construindo a Associação Latino-Americana e Caribenha de Investigadores Afrodescendentes, que idealizamos em Curitiba, 2015, no Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros da Região Sul e fundada no CBPN de Dourados, MS, em 2017. Ao mesmo tempo, preparavamos a conferência interamericana de pesquisadores negros, com apoio da Universidade da Florida, Universidade Três de Fevereiro, Argentina, entre outras. Igualmente, no âmbito da Associação Mundial de Pesquisa em Educação, WERA, na sua sigla em inglês, juntamente com colegas como Karine Jonker da Universidade de Pretória, na África do Sul, estávamos planejando uma parceria Sul-Sul de pesquisas educacionais, focada em problemas e soluções para nossas realidades.
Não se trata apenas de mera apropriação de agendas, cooptação de atores. Mas, seguindo a senda aberta pelo filósofo argentino, naturalizado mexicano, Enrique Dussel, de compreender estes movimentos dentro de uma geopolítica do conhecimento, na qual a Universidade de Harvard ocupa um papel central.
Instituições como ela, são fundamentais para nos manter presos a um ensino colonizado e a uma atitude subalterna descomprometida com os esforços de emancipação política da Pátria Grande, Produzem professores universitários que não apenas forjam seu conhecimento, como articulam suas carreiras ao Atlântico Norte e são incapazes de elaborar nossas experiências em nossos próprios termos.
Alguém já se perguntou o porquê de 200 anos depois da nossa independência política nós estarmos presos ao sistema quatripartite francês de periodização histórica? Como se a história da humanidade fosse resumida em História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea, tendo o penhasco do extremo-oeste da Ásia, filha de bárbaros, ladrões e genocidas como centro do mundo?
Nosso desespero se amplia quando vemos o governo brasileiro, dito de esquerda, apesar do consenso internacional da brutal crise dos sistemas educacionais da Europa, EUA e demais colônias brancas, e da incapacidade dessas instituições de colaborar com seus países para o enfrentamento das mudanças tectônicas que estão ocorrendo no mundo atual, a CAPES e CNPq, despejem milhões de reais em programas de intercâmbio acadêmicos com esses países, e pouco faz para articular nossas instituições acadêmicas com o nosso entorno estratégico no Atlântico Sul e nações BRICS+.
Diante da brutal crise do império, Donald Trump está buscando posicionar os Estados Unidos em um mundo multipolar. Neste processo, está demolindo toda a estrutura globalista, liberal/woke construída pelo Partido Democrata em décadas e consolidada em instituições nacionais, órgãos governamentais e universidades. A facção das classes dominantes estadunidenses que o fez presidente, lhe deu um mandato para enfrentar esses desafios.
Se dará certo ou não, ninguém até o momento sabe a resposta. Mas a luta política no interior do império tem tornado visível as entranhas das práticas de dominação e nós devemos aproveitar a oportunidade para aprender e não chorar pelos nossos algozes.
Considere, por favor, de seguir nosso canal no Telegram:
https://t.me/mundomultipolar
Comentários