GEOFOR entrervista The Saker: PUTIN-BIDEN: EXISTEM COISAS QUE A RÚSSIA NÃO IRÁ TOLERAR. GEOFOR - The Saker Blog, 21 de dezembro 2021.Ok


Traduzido do russo para o inglês por Lilia Shumkova
Traduzido do inglês para o português por @QuantumBird e revisado por @LadyBharani
Fontes:

GEOFOR (russo): https://geofor.ru/4769-putin-bajden-est-veshhi-kotorye-rossiya-terpet-ne-budet.html

The Saker Blog (inglês): https://thesaker.is/the-russian-website-geofor-interviews-the-saker/

GEOFOR: Caro Sr. Raevsky, lembro-me de como após a reunião de Genebra com o presidente Vladimir Putin, o seu colega estadunidense, o presidente Joe Biden, em resposta a uma pergunta sobre a continuação dos contatos de alto nível entre nossos países, disse que deveríamos esperar até o final do ano e, após essa data, tomar a decisão adequada. E agora, seis meses depois de Genebra, um novo diálogo, ainda que em formato de vídeo. Além disso, desta vez a iniciativa foi do lado estadunidense. O que você acha que isso significa? O que a Casa Branca queria obter e em que medida foi bem sucedida?

Raevsky: Durante a administração Biden, os Estados Unidos recorreram à Rússia cinco vezes com um pedido de negociações – três vezes por telefone, uma pessoalmente e agora esta, por videoconferência. Por que eles precisam disso? Bem, você tem que olhar o contexto geral do ponto de vista dos Estados Unidos e do próprio Biden. Ele tem várias “frentes”, não apenas o problema da Rússia e da Ucrânia. Diria que esta não é nem mesmo a sua “frente” prioritária. Existem duas principais. Em primeiro lugar, existe uma “frente” interna: ele tem uma avaliação muito baixa; a crise social, econômica e política nos Estados Unidos agora é total e, em muitos aspectos, lembra a União Soviética na década de 1980. As forças armadas americanas já provaram muitas vezes sua total incapacidade de conduzir operações de combate e alcançar qualquer resultado com elas. O Iraque é um desastre. Eles têm medo do Irã e não querem competir com ele. Você viu a desgraça no Afeganistão. Agora o clima doméstico está muito deprimido e raivoso. Essa “frente” interna do presidente Biden é, sem dúvida, a mais perigosa.

A segunda “frente” muito perigosa que ele tem é a questão da China. Os estadunidenses dizem que em dois anos não conseguirão mais ter vantagem na guerra contra a China; que algo precisa ser feito com urgência.

Pessoas que entendem os princípios e o impulso da reforma das Forças Armadas e do desenvolvimento de novos sistemas de armas, os princípios da tática e da arte militar em geral, entendem que nada pode ser feito em dois anos. Demora uma década, talvez mais de uma.

China e Estados Unidos caminham para um confronto. Pequim definitivamente ocupa a posição do jogador mais forte. E os estadunidenses estão fracos em todas as frentes.

Em seguida, eles têm o Oriente Médio, onde o Irã está agora, de fato, controlando a bola. Israel está tentando manter a aparência de que é muito forte e muito perigoso, mas na realidade os Estados Unidos agora estão perdendo todo o Oriente Médio.

Este era um objetivo aberto dos iranianos. Este é um país que é uma ordem de grandeza menor ou mais fraco do que a Rússia ou a China, e que agora – em geral, com sucesso – expulsa os Estados Unidos do Oriente Médio, ou pelo menos de muitas partes de lá.

E, claro, outra “frente” é a Ucrânia, a Rússia mais a Europa. E na Europa – é preciso enfatizar isto – existe uma crise econômica.

Por todas essas razões, Biden estava em uma situação extremamente difícil.

A Rússia tem recuado em todas as frentes nos últimos 20 – talvez 30 – anos. E agora a situação se assemelha à de quando os tanques alemães estavam perto de Moscou. Chegou a hora de dizer:

“Nem um passo adiante”.

Acho que [Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da Federação Russa, Valéry] Gerasimov e Putin transmitiram exatamente isso aos estadunidenses:

“Digam o que quiserem, não praticaremos a mesma retórica beligerante. Mas, na realidade, temos os meios para repelir qualquer provocação ou ataque seu, e teremos que fazer isso se você não mudar de curso.”
Acho que a percepção do quão perigosa é a situação atual finalmente chegou ao “Biden coletivo”.

Agora, sobre se ele conseguiu o que queria nesta videoconferência.

Certo. Até certo ponto, sim. Porque ele poderá dizer que foi ele quem parou a Rússia na Ucrânia, foi ele quem parou a China, e que nenhum ataque a Taiwan aconteceu sob seu comando.

Mas isso, logicamente, é ficção. Todos entendem perfeitamente que nem a China nem a Rússia precisam dessas guerras. Todos esses medos foram alimentados pelos próprios estadunidenses.

E foi aí que eles realmente se assustaram, o que foi a coisa certa a se fazer, porque eles absolutamente não são durões o suficiente para “bater de frente” com Irã, China e Rússia ao mesmo tempo.

Mas há uma certa especificidade da política americana nisso tudo. Muitas vezes, diplomatas estadunidenses vêm a Moscou e dizem uma coisa; quando voltam, são atacados pela mídia e pelo Congresso. Tanto a mídia quanto o Congresso estão totalmente nas mãos do “War Party/Partido da Guerra” aqui. Seguem-se acusações de fraqueza, brandura, covardia, etc. e aqui precisam mostrar sua “bravura”.

Por exemplo, Trump agiu assim quando negociou com o lado russo e depois declarou: “Não houve acordos”.

Portanto, agora resta saber se Biden será capaz de resistir ao ataque do “Partido da Guerra”. Se ele puder fazer isso, digamos, nas próximas 2-3 semanas, então eu diria que para ele esta conversa foi um sucesso claro e indiscutível.

E se o “War Party” o quebrar, como quebrou Trump muito rapidamente, então tudo voltará ao normal, e nós retornaremos ao mesmo limiar em que a Rússia e os Estados Unidos estarão à beira de uma guerra em grande escala. Isso, em geral, não é necessário para ninguém, e talvez tenha chegado ao lado estadunidense que uma coisa é falar de dominação mundial, lutar contra forças fracas e incapacitadas. E outra coisa é travar uma guerra contra uma verdadeira superpotência militar.

GEOFOR: A reunião foi precedida por um forte ataque de propaganda contra a Rússia, durante o qual Washington claramente tentou "aumentar as apostas". O presidente Biden disse ainda que não vê e não aceita quaisquer “linhas vermelhas” traçadas por Moscou. Mesmo assim, pouco antes da reunião, o Congresso retirou uma série de sanções contra a Rússia do orçamento de defesa, incluindo o Nord Stream-2. Claramente sob a influência da administração. Como você explica tal metamorfose?

Raevsky: Claro, em primeiro lugar, era necessário “aumentar as apostas” para não só, como gostam de dizer no Ocidente, “negociar a partir de uma posição de força”, mas também para convencer tanto a opinião pública quanto o “War Party” que não estamos de forma alguma fazendo concessões à Rússia. E Biden disse: “Não reconheceremos nenhuma linha vermelha!” [Secretário-Geral da OTAN] Stoltenberg disse: “Nós fazemos o que queremos e a Rússia não nos ordena!” e assim por diante.

É tudo relações públicas.

Na realidade – o fato de já terem pedido negociações com a Rússia pela quinta vez mostra quem está em uma posição de força e quem não está.

E este levantamento das sanções de que fala no orçamento da defesa é, em geral, um pequeno passo, ao invés, um passo diplomático de boa vontade. Mas, na verdade, o problema com o Nord Stream-2 já foi resolvido. A única coisa que pode fechá-lo é uma guerra em grande escala entre a Rússia e a Ucrânia – ou algo pior. Eles já sancionaram a Rússia de modo que não há outro lugar para ir – eles próprios dizem isso.

Portanto, se você não tem mais a oportunidade de impor outras sanções, pode “vender” essa “não-imposição” de sanções como um gesto de boa vontade.

Esta é a Realpolitik e nada mais.

Os estadunidenses nunca abandonaram seus objetivos estratégicos – conter e cercar a Rússia, forçando-a a uma obediência submissa e rendição de sua soberania; e este é o objetivo final que os estadunidenses nunca concordaram em abandonar.

Este é um objetivo estratégico. E tudo o que está sendo feito agora, para os estadunidenses, é a nível de tática, não de estratégia.

Eles ainda não discutiram a estratégia, porque revisar a estratégia significa revisar toda a ideologia sobre a qual este país está construído. Eles ainda não estão prontos para isso.

GEOFOR: A visita de Putin a Deli poderia ter influenciado a posição do lado estadunidense e, em caso afirmativo, de que forma? Recorde-se que durante esta reunião bilateral com a liderança indiana, vários documentos foram assinados, incluindo um acordo sobre questões militares até 2030. Além disso, este documento diz respeito não apenas à cooperação técnico-militar.

Raevsky: Aqui você precisa entender um jogo muito sutil que os indianos estão jogando. Eles são amigos dos Estados Unidos, vão até mesmo a esta Cúpula das Democracias. Mas eles não são vizinhos da Rússia, mas da China, que para eles é um inimigo regional.

Mas, para enfatizar o quão amigáveis são com os Estados Unidos, e não contra a Rússia, a viagem de Putin à Índia foi organizada e contratos gigantes foram assinados lá, incluindo contratos de armas, incluindo defesa aérea S-400, que os estadunidenses proibiram categoricamente os indianos de comprar, e os indianos nem se importaram com essa proibição.

Na verdade, a atitude da Índia em relação à Rússia é um tapa na cara dos Estados Unidos. Isso mostra que os indianos olharão de forma muito seletiva para o que lhes é benéfico e agirão em seus próprios interesses, e não serão marionetes submissos nas mãos de ninguém, certamente não dos Estados Unidos.

Gostaria também de acrescentar que, a meu ver, o confronto entre a China e a Índia é o principal problema atual do continente eurasiático. Vejo apenas um lado que pode ajudar esses dois países a mudar as relações, passar para uma qualidade diferente. É claro que esta é a Rússia.

E a tarefa estratégica dos estadunidenses, ao contrário, é incitar a qualquer custo mais conflitos entre a China e a Índia.

E é claro que as partes continuarão a dobrar sua própria linha. Moscou representa a paz na Eurásia e nos Estados Unidos – se não pela guerra, então, em qualquer caso, pela tensão militar e pelo confronto entre esses dois grandes países.

GEOFOR: Uma das principais prioridades de Moscou nessas negociações foi a questão de garantir a segurança da Federação Russa, o que foi afirmado muito antes da reunião. Como ficou sabido, o lado estadunidense confirmou sua disposição para o diálogo sobre o assunto. Em particular, para discutir a questão da remoção de armas ofensivas ao longo das fronteiras russas da Noruega à Romênia e possivelmente à Turquia. Isso também inclui automaticamente a Ucrânia. Como isso se relaciona com as declarações agressivas e duras na véspera da reunião?

Raevsky: Oficialmente, pouco antes da reunião, os estadunidenses disseram que se recusam categoricamente a reconhecer as linhas vermelhas de Moscou. Stoltenberg também disse que “a Rússia não significa nada para nós, ela tem que se comportar adequadamente e ficar quieta, e nós faremos o que quisermos”.

Mas, na realidade, grupos de especialistas se reunirão. E o que eles discutirão? Sim, claro, apenas essas linhas vermelhas. Este é o único objeto de negociação real possível entre esses dois países.

Então, na verdade, os Estados Unidos dizem uma coisa e fazem outra.

Sim, eles agora estão fazendo concessões a Moscou. O crescente poder das Forças Armadas russas e as forças da economia russa e do “soft power/poder brando” político forçaram os estadunidenses a fazer concessões.

Do ponto de vista dos estadunidenses, a própria Ucrânia em seu estado atual é um “país 404”, e eu diria que, em geral, toda a Europa acabou se tornando uma “mala sem alça”. E os estadunidenses não são mais capazes de arrastar-los – nem econômica nem politicamente.

Então, o que eles podem fazer? Depois de decidir abandonar a mala sem alça, então você pode incendiá-la e torcer para que o incêndio criminoso resulte em algo.

E o que fazer? Sim, é muito simples – o sonho dos estadunidenses é que a Rússia realmente conquiste o máximo de Ucrânia possível. Primeiro, porque este é um “buraco negro” que se tornaria uma dor de cabeça para a Rússia, não para os Estados Unidos. Em segundo lugar, criará condições ideais para bloquear o Nord Stream-2 e até mesmo outros projetos de energia entre a Europa e a Rússia. E, terceiro, isso criará – finalmente! – a próxima “guerra fria”, sem a qual os estadunidenses e, em geral, os políticos e generais ocidentais ficam muito tristes.

Todos entendem que, em caso de guerra, a Rússia vencerá de forma rápida e convincente. Mas depois disso, surgirá uma situação que se assemelhará, talvez, à “crise de Berlim” com um nível de confronto semelhante. E o “Partido da Guerra” no Ocidente quer isso por uma série de razões.

Por exemplo, se o fornecimento e transportadoras de energia da Rússia forem interrompidos, então, de quem o setor de combustível e energia será capaz de compensar os recursos perdidos? O estadunidense, é claro. Seu gás liquefeito.

O mesmo é verdade na esfera da influência política. Se, digamos, uma guerra aberta acontecer e a Rússia libertar apenas uma parte da Ucrânia do domínio nazista, isso será apresentado como prova de que apenas a OTAN pode salvar a Europa do “mordor” de Putin.

Seria muito benéfico para os estadunidenses desencadear uma guerra em grande escala. Esta é a interpretação do “War Party”. Mas há outras pessoas – pessoas sãs – que entendem que tal situação pode levar a uma escalada muito rápida e um confronto direto entre os Estados Unidos e a Rússia. E eles não querem isso.

E assim, por um lado, estamos vendo declarações “legais”. Por outro lado, há uma série de concessões que os estadunidenses estão dispostos a fazer até agora.

E os sistemas de armas ofensivas que eles agora implantaram em outros países são uma questão puramente política, não militar. Quando Putin diz que, para um míssil hipersônico ocidental do território da Ucrânia, o tempo de aproximação será de cinco minutos até Moscou, isso é um fato. Mas, por outro lado, o tempo de aproximação de um ataque preventivo por armas hipersônicas russas também será, por definição, de cinco minutos. E, nessa área, a Rússia ultrapassou os Estados Unidos por muito tempo e de forma muito significativa. A Rússia também tem a oportunidade de colocar mísseis no Oceano Atlântico fora da zona de operação de possíveis meios anti-submarinos dos Estados Unidos e “swoop”/arremeter-se de lá.

Esses sistemas ofensivos são perigosos para a Rússia, não tanto do ponto de vista militar quanto do político, pois se trata, na verdade, de uma provocação política. Mostra o que, como os estadunidenses gostam de dizer, “eles enviam uma mensagem”.

Esta é a mensagem: “Não nos importamos com você! Fazemos o que queremos e onde queremos.” Isso significa que a Rússia não é uma parte igual às negociações, que existe um grande Hegemon e Suserano de todo o planeta, que faz tudo o que quer e como quer, e a Rússia é convidada a calar a boca, ficar quieta e relaxar.

Este problema político é muito real para a Rússia. Portanto, a situação atual forçará a Rússia em algum momento a traçar linhas vermelhas e dizer que há coisas que não serão toleradas.

Obviamente, tanto Putin quanto o general Gerasimov trouxeram com muito sucesso essas realidades à consciência do "Biden coletivo".

GEOFOR: A informação que nos chega após a reunião sugere que o tom da conversa entre os presidentes russo e estadunidense é semelhante ao das conversas remotas de Biden com o camarada Xi, também ocorridas recentemente. Por exemplo, durante uma conversa com o líder chinês, o presidente dos Estados Unidos enfatizou a necessidade de se abster de tomar Taiwan à força, o que essencialmente significava que Washington não se opunha aos métodos econômicos e políticos. Quanto às negociações russo-americanas, em parte da Ucrânia, por exemplo, não foram discutidas questões relacionadas à sua integridade territorial, a Crimeia e a notória “agressão russa”. E no briefing após a conversa, o assistente do Presidente, J. Sullivan, pediu a Kiev que parasse a escalada das tensões no Donbass e referiu a liderança ucraniana aos acordos de Minsk. Qual é a razão dessa posição: o desejo de manter o status quo por um tempo? Então – com que propósito e por quanto tempo?

Raevsky: Nesta área, pode-se dizer que a situação mudou completamente.

A Rússia precisava dessas décadas [fazendo concessões – nota dos tradutores] de concessões para fortalecer a própria sociedade russa, fortalecer a esfera da informação, a economia russa, estabelecer a substituição de importações, criar novos laços com outros países e, o mais importante, desenvolver as Forças Armadas a tal ponto que elas pudessem lidar com qualquer ameaça à Rússia.

A situação dos estadunidenses está invertida. Eles têm uma crise interna mais profunda – política e econômica. O estado das forças armadas americanas é muito frágil.

Claro, o status quo atual é benéfico para eles. A alternativa é continuar no caminho da escalada e, então, só há um caminho – o confronto militar. Não sobrou mais nada. Tudo abaixo do nível de confronto militar já foi feito. E é completamente inútil para eles irem a um confronto militar aberto com a Rússia.

Por quanto tempo esse status quo é benéfico para eles? É necessário distinguir claramente os dois lados. Do lado militar, a reforma das Forças Armadas é um processo muito longo e difícil, muito complexo, e as Forças Armadas têm uma inércia enorme, que é muito difícil de se reorientar em outra direção, considerando que o calendário político estadunidense é de dois anos à frente; um ano à frente, bem, quatro anos à frente no máximo.

Do lado político, a avaliação de Biden agora é catastroficamente baixa. A situação dentro do país é muito ruim. Portanto, é mais lucrativo para ele manter o status quo por um ou dois anos do que ter um confronto direto com a Rússia durante sua presidência. Além disso, ainda não se sabe quais benefícios os chineses e iranianos poderiam encontrar para si mesmos em tal confronto.

Portanto, os estadunidenses precisam do status quo. Do lado político, dois anos, mesmo um ano, é muito melhor do que uma guerra.

No longo prazo, o status quo atual, eu acho, é apenas uma tela colocada para esconder o fato de que eles continuarão a se autodestruir. Na minha opinião – e conheço muito bem este país – é absolutamente impossível reconstruí-lo. As reformas são impossíveis aqui, porque este país se baseia no imperialismo, na ideologia da dominação mundial, e é simplesmente impossível para ele abandonar isso. Falando "na língua americana", "não é americano". Ou seja, reconhecer, por exemplo, apenas a possibilidade de os Estados Unidos serem “um dos países do mundo”, mas não “o líder de toda a humanidade”, é algo literalmente impensável para a maioria dos estadunidenses, e certamente para os políticos estadunidenses. Para eles, isso é simplesmente inaceitável.

Toda a [gritaria – nota dos tradutores ] maluca de “jardim de infância” – não há outra maneira de dizer isso – que ouvimos agora de um congressista local sobre a Rússia, sobre a China, sobre os outros, é um reflexo desse tipo de pensamento e visão de mundo.

Infelizmente, nos Estados Unidos, ser um defensor declarado do “Partido da Guerra” parece patriótico. E como este país não teve nenhuma guerra real em defesa de sua pátria, e eles perderam todas as outras guerras após a Segunda Guerra Mundial, este é um país que simplesmente não pode abandonar sua ideologia imperial, e agora carece das ferramentas de que precisa para impor sua ideologia imperialista em todo o planeta.

Portanto, falando realisticamente, eles precisam do status quo pelo maior tempo possível. Mas é impossível definir esse “maior” tempo. Existem muitas variáveis, muitos cenários.

GEOFOR: Sobre problemas protocolares nas relações com a Casa Branca. Em preparação para a reunião, foi amplamente anunciado que a conversa seria "individual". E agora vemos o presidente Biden negociando cercado por quatro de seus assessores. Essa transformação do formato da reunião contribui para o estabelecimento de um clima de confiança nas negociações e, de forma mais ampla, nas relações bilaterais em geral?

Raevsky: Em primeiro lugar, você precisa entender que, quando se trata de Biden, é claro, estamos falando de "Biden coletivo". O próprio Biden não é capaz de se aprofundar em todos os problemas que enfrenta, nem de negociar. E, certamente, não com um homem como Putin, que pode falar quatro horas sem um pedaço de papel e lembrar de todos os números sobre todos os assuntos.

Naturalmente, precisa haver conselheiros ao seu redor; não há nada novo aqui.

Quando George W. Bush foi interrogado sobre os eventos de 11 de setembro [2001], ele não era confiável o suficiente para responder às perguntas sozinho. Dick Cheney estava sentado ao lado dele, que tinha que se certificar, como o “supervisor sênior”, de que Bush não deixaria escapar nada supérfluo. É o mesmo aqui.

Esses conselheiros o cercam, naturalmente, para aconselhar, mas também para ficar de olho nele. Eles são os vigilantes e ele é o seu representante oficial.

Além disso, eu diria mesmo que este é um sinal muito bom – assim como eu dei as boas-vindas à viagem de Victoria Nuland e do diretor da CIA a Moscou. Isso mostra que “pessoas sérias” estão falando com o lado russo. Agora, se eles mandassem Kamala Harris para falar com alguém, isso seria um sinal de total desconsideração. Ou, digamos, como Blinken liga para Zelensky para contar a ele o que aconteceu nas negociações.

Não existe tal desprezo aqui. Pelo contrário, existem pessoas sérias que sabem do que falam e são capazes de tomar decisões. Isso mostra que as negociações não foram simbólicas e que realmente houve uma mudança. Na minha opinião, isso só pode ser bem-vindo.

Mas! Não tem como haver nenhuma questão de atmosfera de confiança. É o que pensam os jornalistas: há um clima de confiança nas negociações entre a Rússia e os Estados Unidos.

Essas negociações apenas desenvolvem medidas de construção de confiança – aquelas que são verificáveis.

Não pode haver dúvida sobre qualquer confiança.

Muito provavelmente, em termos gerais, as partes concordaram com algumas etapas, e grupos de especialistas trabalharão em detalhes – do tipo: quem, como e quando verificará as medidas mutuamente acordadas durante as negociações.

Aqui podemos lembrar o presidente Ronald Reagan, que disse: “Confie, mas verifique”.

É exatamente isso que estamos vendo agora: os dois lados vão dar o máximo, porque as apostas são muito altas. Quando existe o risco de confronto militar entre duas superpotências nucleares, não pode haver confiança. Só pode haver etapas mutuamente obrigatórias absolutamente verificáveis dos dois lados.

GEOFOR: E agora algumas palavras sobre os assuntos de Washington. Quanto mais longe, mais perceptível a discórdia na equipe de política externa da Casa Branca. Se o agravamento da situação nas relações bilaterais, as duras críticas à Rússia, etc. vierem do Secretário de Estado e sua equipe, então uma certa abordagem construtiva virá do assistente de segurança nacional. Isso se tornou especialmente notável depois que a Sra. Nuland, cujos resultados de trabalho aparentemente não satisfizeram muito a Casa Branca, uma diplomata experiente, um ex-embaixador na Rússia e agora o diretor da CIA, William J. Burns, que vários analistas russos descrevem como "equipe Sullivan", chegaram a Moscou.

O presidente Biden conseguirá continuar acima da briga de seus assessores mais próximos? Quão subjetivo ele é ao tomar e implementar suas decisões políticas? Depois de tudo, ainda é impossível ignorar as opiniões de ambas as partes no Capitólio...

Em suma, quanto pode a Rússia confiar nos acordos que foram alcançados durante o diálogo ao mais alto nível? As decisões sobre o estudo conjunto de questões de interesse para ambas as partes irão além das consultas de especialistas e se traduzirão em acordos vinculativos concretos? Ou ainda é uma tentativa de obter uma trégua no tempo para resolver seus problemas internos, reformar as relações com os aliados e depois voltar ao período de confronto?

Raevsky: Sem dúvida, há duas partes aqui. Há uma luta muito séria acontecendo dentro das classes dominantes dos Estados Unidos e no chamado “estado profundo”.

Imagine algum tipo de grupo de gângsteres – um desses grupos do crime organizado, cada um controlando alguma parte da cidade. Enquanto as coisas estiverem indo bem, eles se sentam quietos. Mas assim que a crise começa, eles começam a lutar entre si.

E, assim, a eleição de Trump há quatro anos trouxe uma tal divisão nas elites americanas governantes que agora uma batalha muito forte está acontecendo no topo em diferentes grupos e clãs do governo estadunidense. E a divisão não é entre republicanos e democratas. Relativamente falando, por um lado, há um "Partido da Guerra" e, por outro lado, há um "Partido da Paz". Isso é muito condicional, mas não está errado.

Em primeiro lugar, os membros do “Partido da Guerra” são puros ideólogos. Em segundo lugar, é o setor de combustíveis e energia da América, que está muito interessado em “separar” a Europa da Rússia. Seria muito benéfico para a economia americana como um todo se a Europa fosse mais fraca e mais dependente dos Estados Unidos. Qualquer cooperação entre a Rússia e a UE é uma ameaça direta e clara aos interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos. Ainda há quem guarde nostalgia da Guerra Fria. Existem os chamados “Neocons”, existem “Neoliberais” e existem vários lobbies que são hostis à Rússia por vários motivos. O lobby israelense, o lobby polonês, o lobby ucraniano. Todos esses grupos agrupados podem ser chamados de “Partido da Guerra”.

E existe um “Partido da Paz”, que, creio eu, é formado por aquelas pessoas que entendem que, indo mais longe nesse caminho, só se chega a um ponto – à guerra. Este partido não quer pagar esse preço. Este partido provavelmente entende que é simplesmente demais para os Estados Unidos entrarem em um confronto total com a Rússia, o Irã e a China ao mesmo tempo.

Mesmo que quisessem a guerra, eles percebem que nesta situação é melhor para eles se apresentarem como um “Partido da Paz”.

Isso é provavelmente o que Biden deseja alcançar. Ele quer demonstrar que com sua “bravura” e desrespeito a quaisquer demandas da Rússia e da China, ele conseguiu, parou tanto a “agressão russa” contra a Ucrânia quanto a “agressão chinesa” contra Taiwan.

Que não haja absolutamente nenhuma realidade sob esta retórica, não importa de forma alguma. Isso tudo é para consumo interno e para a política interna. E também para preservar a imagem do Hegemon Mundial, que, infelizmente, é absolutamente impossível para os estadunidenses abandonarem, uma vez que essa ideologia está “embutida” na identidade nacional de muitos – senão de todos – estadunidenses. Além disso, todos os políticos, para se mostrarem patriotas, devem ser partidários do “Partido da Guerra” e das medidas unilaterais “bravas”. Neste país – ai de mim! – isso é interpretado não como um sinal de insanidade ou irresponsabilidade, mas como um sinal de “bravura”. E se o presidente demonstrar essas qualidades, ele é um presidente forte e sério.

Como reformar um país assim e dar a ele a oportunidade de se tornar apenas um país normal, e não um Império, eu não posso imaginar. Não vejo como esse sistema pode ser reformado. A única saída, que infelizmente vejo, é que deve entrar em colapso. Desmaie rapidamente durante um confronto militar – Deus nos ajude! – ou por meio de algum tipo de acordo para "pisar no freio". Isso é o melhor que todos podemos esperar.

GEOFOR: Então, como você vê o futuro das relações entre Moscou e Washington?

Raevsky: Em primeiro lugar, sempre acreditei e escrevi que por pelo menos sete anos – senão mais – o Império estadunidense e a Rússia estiveram em guerra. Esta é uma guerra ideológica, uma guerra informativa, uma guerra política e uma guerra econômica. E graças a Deus! – não houve nenhuma ação militar importante ainda.

Mas isso não nega o fato de que, de fato, só pode haver um vencedor nesta guerra.

Rússia, Irã, China e outros países querem um mundo multipolar no qual haja lugar para Estados soberanos que se tratem com respeito e de acordo com os princípios do direito internacional.

A visão americana de futuro é a hegemonia mundial, “os EUA estão à frente de todo o planeta”, os EUA governam tudo e todos, e não há iguais.

Este é um ponto muito importante – “Não temos iguais.” É uma ideia que criou gerações de estadunidenses.

Mas, de repente, o general Milley [presidente do Estado-Maior Conjunto] disse que, em geral, do ponto de vista militar, o mundo já tem pelo menos três polos – Estados Unidos, Rússia e China. Na verdade, existem mais desses polos. Por exemplo, no Oriente Médio, a potência regional mais forte não é mais Israel – é o Irã.

A situação está mudando, e não beneficia os Estados Unidos.

A Rússia joga por muito tempo. Ela vinha se afastando e cedendo há muito tempo, porque era necessário criar tais Forças Armadas que pudessem realmente garantir a segurança da Rússia diante de quaisquer ameaças. A Rússia finalmente conseguiu isso.

Para a Rússia, a ideia da dominação anglo-saxônica sobre o planeta, quando todos os outros deveriam servi-los, é fundamentalmente inaceitável – e eu diria até civilizacionalmente inaceitável. A Rússia se considera um jogador igual entre os grandes deste mundo.

Quais serão as relações entre Moscou e Washington? Um lado perderá a guerra e o outro terá vantagem.

Não necessariamente, aliás, uma guerra com operações militares. Esta poderia ser uma guerra puramente política apenas, se Deus quiser!

Mas apenas um dos dois boxeadores no ringue permanecerá de pé. O segundo terá que aceitar uma derrota real.

Para a Rússia, tal derrota significaria perda de soberania e desestabilização. O que a colocará mais uma vez em uma posição perigosa.

E para os Estados Unidos, simplesmente desistir da dominação mundial já é uma derrota total, porque obrigará este país a se reformar completamente e a se recriar em novas bases. Do qual eles absolutamente não são capazes, no momento. Para reformar o país, são necessárias décadas – se não houver força externa. E como os tanques russos não aparecerão nas ruas de Washington, nenhum expurgo como aquele que foi contra os nazistas após a Segunda Guerra Mundial na Alemanha, aqui – ai de mim! – isso não vai acontecer.

Isso significa que tudo isso levará muito tempo, e esse processo não só será longo, mas também perigoso para este país.

Andrei Raevsky nasceu em Zurique, Suíça, seu pai é holandês, sua mãe é russa de uma família de imigrantes russos brancos. Em 1984, ele entrou no serviço militar ativo na unidade de guerra eletrônica e depois foi transferido para o serviço de inteligência militar como especialista em idiomas, para trabalhar nos interesses da Força Aérea Suíça. Em seguida, ele se mudou para os EUA, onde se formou em Relações Internacionais pela Escola de Serviço Internacional (SIS) da American University (American University) e fez um mestrado em Estudos Estratégicos (Estudos Estratégicos) na School of Advanced International Studies. Paul N. Nitze da Universidade Johns Hopkins (Escola Paul H. Nitze de Estudos Internacionais Avançados (SAIS) da Universidade Johns Hopkins). 

Ao retornar à Suíça, trabalhou como consultor civil (em posição correspondente ao posto militar de “major”) no Serviço de Inteligência Estratégica da Suíça (SND), preparando materiais analíticos estratégicos, principalmente sobre as forças armadas soviéticas / russas. Trabalhou como especialista em “operações inimigas” (“Red Team” no jargão militar americano) para treinar pessoal no nível operacional do Estado-Maior das Forças Armadas Suíças. 

Posteriormente, trabalhou no Instituto das Nações Unidas para Pesquisa de Desarmamento (UNIDIR), onde se especializou em táticas e operações de manutenção da paz. Ele escreveu um livro sobre operações psicológicas e de inteligência em manutenção da paz e quatro livros de obras coletadas “The Essential Saker” (The Essential Saker). Fala russo, inglês, francês, espanhol e alemão. Raevsky é licenciado em Estudos Teológicos Ortodoxos (PhD em Teologia Ortodoxa) do Centro de Estudos Ortodoxos Tradicionalistas no Mosteiro de São Gregório Palamas em Etna, Califórnia (o “Centro de Estudos Ortodoxos Tradicionalistas” (CTOS) em São Gregório Palamas mosteiro em Etna, Califórnia).

 Cidadão suíço. 

Mora no estado da Flórida.

As perguntas foram feitas por Sergey Dukhanov, jornalista internacional e americanista. Trabalhou como correspondente próprio da NOVOSTI Press Agency no Canadá (Ottawa, 1990-1992) e como chefe do American Bureau (Washington, 1996-2001) dos jornais Business MN, Delovoy Mir e Interfax-AiF.



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