Único crime do Irã é que “decidimos não nos curvar"

 

Publicado pelo Prof. Lejeune MIrhan lejeunemgxc@uol.com.br

dom., 1 de dez. 10:36 (há 11 dias)
para gtarabepalestinaja
Único crime do Irã é que “decidimos não nos curvar” 
26/11/2019, Pepe Escobar, de Nur-Sultan, Cazaquistão (in Asia Times e Consortium News)

Bem a tempo de lançar uma luz sobre o que está por trás das mais recentes sanções impostas por Washington, o ministro de Relações Exteriores do irã Mohammad Javad Zarif, em discurso na reunião anual do Astana Club em Nur-Sultan, Cazaquistão, ofereceu relato candente das relações Irã-EUA, a um público seleto, de diplomatas de alto escalão, ex-presidentes e analistas.

Zarif foi o principal palestrante num painel intitulado “O Novo Conceito de Desarmamento Nuclear” [ing. “The New Concept of Nuclear Disarmament”]. Cumprindo agenda frenética, levantou para uma conversa privada com o primeiro presidente cazaque, Nursultan Nazarbayev, e voltou à mesa redonda.

Durante o painel, o moderador Jonathan Granoff, presidente do Global Security Institute, conseguiu impedir que o questionamento que um analista do Pentágono fazia a Zafir se convertesse em pancadaria.

Antes, eu já discutira longamente com Said Rasoul Mousavi, ministro para a Ásia Ocidental no Ministério de Relações Exteriores do Irã, uma infinidade de detalhes da posição do Irã por todo o mundo, do Golfo Persa ao Afeganistão. Estive naquela mesa redonda à James Bond do Astana Club, como moderador de dois outros painéis, um sobre a Eurásia multipolar e o ambiente pós-INF [Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário]; e outro sobre a Ásia Central (assunto para outras futuras colunas).

A intervenção de Zarif foi contundente. Destacou que o Irã cumpriu “todos os acordos que firmou, e deu em nada;” que “nosso povo acredita que nada obtivemos por ter assinado o Plano Conjunto de Ação Ampla, [ing. Joint Comprehensive Plan of ActionJCPOA]”; que a inflação está fora de controle; que o rial perdeu 70% do valor real, “por causa de ‘medidas de coerção’ – não sanções, porque são ilegais.”

Falou sem anotações, mostrando conhecimento absoluto do pântano inextrincável que são as relações EUA-Irã. Foi uma bomba. Aqui os pontos principais.
Imagem: Ministro das Relações Exteriores do Irã Mohammad Javad Zarif, na reunião anual do Astana Club em Nur-Sultan, Cazaquistão, no início desse mês. (Asia Times/Pepe Escobar)

A fala de Zarif começou nas negociações do Tratado de Não Proliferação Nuclear, em 1968, com a posição do “Movimento dos Não Alinhados de só aceitar as determinações do Tratado se, numa data posterior – que seria 2020 – “se fizesse o desarmamento nuclear.” Dentre 180 países não alinhados, “90 copatrocinaram a extensão sem prazo do Tratado de Não Proliferação.”

Avançando para hoje na narrativa, mencionou que EUA e França estão “confiando em armas nucleares como meios de contenção, o que é desastroso para todo o mundo.” O Irã, por outro lado, “é país que acredita que nenhum país deve possuir armas atômicas”, conclusão a que o Irã chegou “via cálculos estratégicos baseados em nossas crenças religiosas.”

Zarif insistiu em que “de 2003 até 2012, o Irã esteve sob as mais severas sanções da ONU, sanções que jamais foram impostas a qualquer país que não possua armas nucleares. As sanções que foram impostas ao Irã de 2009 a 2012 foram mais severas que as sanções impostas à Coreia do Norte, que tem armas nucleares.”

Discutindo as negociações para o JCPOA iniciadas em 2012, Zarif observou que o Irã partiu da premissa de que “temos de conseguir desenvolver toda a energia nuclear que queiramos produzir”, e os EUA partiram da premissa de que o Irã jamais teria centrífugas.” Era a opção “enriquecimento zero”.

Sempre que fala em público, Zarif volta a um mesmo ponto: que “em jogo de soma zero, todos perdem”. Admite que o JCPOA é “acordo difícil. Não é acordo perfeito. Tem elementos dos quais não gosto; e tem elementos dos quais os EUA não gostam.” No fim, “alcançamos algo semelhante a algum equilíbrio.”

Zarif traçou um paralelo esclarecedor entre o Tratado de Não Proliferação e o chamado “Acordo Nuclear para o Irã”, o JCPOA: “O Tratado de Não Proliferação era sustentado por três pilares: não proliferação, desarmamento e acesso a tecnologia nuclear para finalidades pacíficas. Basicamente, a parte sobre desarmamento do Tratado de Não Proliferação, está praticamente morta; a parte sobre não proliferação agoniza; e o uso da energia nuclear para fins pacíficos está sob grave ameaça” – disse ele.

Por seu lado, o “JCPOA era sustentado por dois pilares: a normalização da economia do Irã, o que se reflete na Resolução n. 2.231 do Conselho de Segurança, e – ao mesmo tempo – o Irã observaria determinados limites no desenvolvimento nuclear.”

Aspecto crucial, Zarif destacou que nada há de “temporização” nesses limites [ing. there is nothing “sunset” about these limits], como Washington tenta argumentar: “Ficaremos comprometidos a jamais, em tempo algum, produzir armas nucleares.”

A desconfiança
Então veio a fatídica decisão de Trump em maio de 2018: “Quando o presidente Trump decidiu retirar-se do JCPOA, nós disparamos o mecanismo de resolução de disputas.” Referindo-se a uma narrativa sempre repetida, segundo a qual ele e o ex-secretário de Estado dos EUA John Kerry estariam obcecados com sacrificar qualquer coisa para alcançar um acordo, Zarif disse: “Negociamos esse acordo baseados na desconfiança. Para isso existe um mecanismo para resolução de disputas.”

Mesmo assim, “os compromissos da União Europeia e os compromissos dos EUA são independentes. Infelizmente, a União Europeia acreditou que pudesse procrastinar. Agora estamos numa situação em que o Irã não recebe qualquer benefício, ninguém está implementando sua parte no acordo, só Rússia e China cumprem parcialmente seus compromissos, porque EUA até as impede de cumprir integralmente seus compromissos. Ano passado a França propôs pagar $15 bilhões ao Irã pelo petróleo que pudéssemos fornecer de agosto a dezembro. Os EUA impediram a União Europeia até de discutir esse assunto.”

Em resumo, então, tem-se que “outros membros do JCPOA não estão cumprindo, de fato, seus compromissos.” A solução “é muito fácil. Voltem ao jogo de soma não zero. Voltem a cumprir seus compromissos. O Irã aceitou negociar desde o Dia 1.”

Zarif antevê que “se os europeus ainda creem que possam nos levar ao Conselho de Segurança e impor-nos Resoluções, estão completamente errados. Porque esse só seria caminho possível, se tivesse havido violação do JCPOA. Mas não houve. Não houve violação alguma do JCPOA. As medidas que tomamos foram tomadas em resposta à atitude de europeus e norte-americanos de não cumprirem o acordado. Foi uma das poucas realizações diplomáticas bem-sucedidas nas últimas muitas décadas. Simplesmente, precisamos garantir que os dois pilares existem: que há algo que pelo menos se assemelhe a um equilíbrio.”

Isso o levou a um possível raio de sol, entre tanta perdição e escuridão: “Se entregarem o que foi prometido ao Irã em termos de normalização econômica, mesmo parcialmente, estamos preparados para manifestar boa fé e voltar à implementação do JCPOA. Se não, então, infelizmente, continuaremos por essa via, que é via de soma zero, via pela qual todos perdem, mas via que não nos deixará outra escolha, exceto avançar por ela.”

Tempo da Iniciativa de Paz de Ormuz
[ing. Hormuz Peace Endeavor, HOPE (port. “Esperança”)]
Zarif identifica três grandes problemas na loucura geopolítica em curso: uma “mentalidade de soma zero nas relações internacionais, que já não funciona”: ganhar excluindo todos os demais (“Temos de estabelecer diálogo, temos de estabelecer a cooperação”); e “a fantasia de que quanto mais armas se comprem, mais seguras estariam as populações.”

Diz firmemente que há uma possibilidade de implementar “um novo paradigma de cooperação em nossa região”, referindo-se aos esforços de Nazarbayev: um verdadeiro modelo eurasiano de segurança. Mas isso, Zarif explicou, “exige uma política de vizinhança. Temos de olhar para os vizinhos como nossos amigos, como nossos parceiros, como gente sem a qual não podemos viver em segurança. Não podemos ter segurança no Irã, se o Afeganistão vive em tumulto. Não podemos ter segurança no Irã, se o Iraque vive em tumulto. Não podemos ter segurança no Irã, se a Síria vive em tumulto. Vocês não podem ter segurança no Cazaquistão, se o Golfo Persa vive em tumulto.”

Observou que, baseado precisamente nesse pensamento, “o presidente Rouhani esse ano, na Assembleia Geral da ONU, ofereceu um novo modo de abordar a segurança na região do Golfo Persa, a Hormuz Peace Endeavor, que nos oferece a sigla HOPE [port. esperança].”

Essa iniciativa HOPE, Zarif explicou, “tem base na lei internacional, no respeito à integridade territorial; parte da aceitação de uma série de princípios e de uma série de medidas que visam a construir confiança; e podemos partir daí como você [dirigindo-se a Nazarbayev] partiu para ampliar a construção na Eurásia e na Ásia Central. Muito nos orgulhamos de participar da União Econômica Eurasiana, somos vizinhos no Mar Cáspio, ano passado concluímos sob sua liderança, a convenção legal do Mar Cáspio. São desenvolvimentos importantes que aconteceram na parte norte do Irã. É preciso repeti-los também na parte sul do país, com a mesma mentalidade de que nossos vizinhos não podem ser excluídos. Por desgraça ou privilégio, temos de viver juntos para sempre. Somos ligados pela geografia. Somos ligados pela tradição, pela cultura, pela religião e pela história.” Para sermos bem-sucedidos “temos de modificar nosso modo de pensar.”


Fim da Era da Hegemonia
Tudo isso se conjuga na principal razão pela qual a política exterior dos EUA praticamente se resume a demonizar o Irã em tempo integral. Zarif não tem dúvida: “Temos a caminho mais um embargo de armas contra o Irã. Mas podemos derrubar um drone espião dos EUA, em nosso território. Tentamos simplesmente ser independentes. Jamais dissemos que destruiremos Israel. Outros disseram que Israel será aniquilada. Nunca dissemos que nós o faríamos.”

Zarif disse que o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu reivindicou para si a propriedade dessa ameaça, ao dizer que “Fui o único a me manifestar contra o JCPOA.” Netanyahu “deu jeito de destruir o JCPOA. Qual o problema? O problema é que os iranianos decidimos não nos curvar. Esse é nosso único crime. Fizemos uma revolução contra um governo apoiado pelos EUA, imposto ao nosso país pelos EUA, [o qual] torturou nosso povo, com ajuda dos EUA e jamais recebeu uma condenação, que fosse, por agressão a direitos humanos. E hoje estranham que se diga ‘Morte à América’? Dizemos morte a essas políticas, porque nada trouxeram que não fosse farsa e mais farsa. O que nos trouxeram? Se alguém fosse aos EUA, derrubasse o presidente dos EUA, impusesse um ditador que assassinasse norte-americanos, os norte-americanos não diriam ‘morte àquele país?”

Zarif teve, inevitavelmente, de evocar Mike Pompeo: “Hoje o secretário de Estado dos EUA diz abertamente: ‘Se o Irã quiser comer, tem de obedecer aos EUA’. Comete crime de guerra. Causar fome é crime contra a humanidade. É manchete de jornal. Se o Irã quer que seu povo coma, tem de obedecer Pompeo. Pompeo está dizendo ‘Morte a todo o povo iraniano’.”

Àquela altura a atmosfera era elétrica sobre toda a imensa mesa redonda. Podia-se ouvir um alfinete cair – ou, como ali, quase se ouviam os impactos infrassônicos das peças da enorme cúpula e do sistema concebido pelo renomado arquiteto Norman Foster, para aquecer o vidro de alto desempenho, para derreter a neve.

Zarif prosseguiu: “O que fizemos aos EUA? O que fizemos a Israel? Fizemos norte-americanos passar fome? Israelenses passaram fome por nossa culpa? Respondam! Quem está violando o acordo nuclear? Porque não gostam de Obama?! E será talvez razão para destruírem o mundo? Só porque não gostam de um ex-presidente?!”

O único crime do Irã, disse ele, é que “decidimos que seremos, nós mesmos, nosso próprio patrão. Se isso é crime – nos orgulhamos dele. E assim continuaremos. Porque temos sete mil anos de civilização. Fomos um império que governou o mundo, e nosso império durou mais de sete vezes todo o tempo de existência dos EUA. Assim sendo – e com todo o respeito ao império norte-americano, a quem devo minha formação profissional –, não nos parece que os EUA sejam império duradouro. A era dos impérios terminou. A era da hegemonia passou há muito tempo. Hoje temos de viver num mundo sem hegemonia nem hegemons – já não é tempo de hegemonia e hegemons regionais ou globais.”*******

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