RAZÃO E RESPONSABILIDADE: COMO HONRAR A MEMÓRIA DOS MORTOS POR NOSSA LIBERDADE


                                           
           


                                                                                   Por Cristiane Mare da Silva

Quando uma “comunidade de sentido” se transforma em uma “comunidade de interesses”, sem ou com metáfora (ao gosto das interpretações), quem nela ocupa o topo da cadeia alimentar vira caça predileta. E, no reino animal, a perseguição é implacável e irrecorrível. Não há juízo, consciência, pausa, reflexão, limite. Nada importa, a não ser o mórbido prazer de saciar a sede e a fome diante do sangue ainda fresco.
                                      Wilson Matos

I’ m not your negro. (EUA, 2017, Raoul Peck). A primeira vez que ouvi falar sobre esse documentário, estudava na cidade de São Paulo e lembro da euforia, em que há cerca de dois anos e meio todxs os espaços com discussões acerca do Racismo, foram convidados a celebrá-lo.
Recordo-me das discussões nas aulas do Curso de Doutorado em História, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nos olhares daqueles que esperam ansiosamente ver na tela a sua história, daquelas imagens e palavras que iriam dar a tônica da luta antirracista na diáspora africana. Mas, igualmente iria tecer o modo de Reinterpretar a sociedade em que vivemos.
Refleti por algum tempo uma passagem de James Baldwin: “Eles usaram sua jornada para instruir as pessoas que tanto amaram, que as traíram e pelas quais deram as suas vidas”.
De fato, as pessoas não conseguem suportar a realidade, preferindo a fantasia e me parece que seja justamente por isso, que ao articular as biografias dessas lideranças, ele concluí do modo acima. Me sinto atônita com a atualidade dessa observação. Um tanto confusa ao perceber que todas essas memórias, em livros, filmes, teses, palestras não foram capazes de nos tornar pessoas melhores.
 O quanto a minha vida (e de parte dos latino-americanos), foi sofrendo transformações nos últimos anos, provocando mudanças que anos antes, pareceriam inimagináveis. Acreditávamos caminhar para a consolidação de um projeto democrático, parece que nos esquecemos que a liberdade é sempre um campo em disputa.
Félix Guatari em A Revolução Molecular (1985) nos alerta: “Podemos imaginar que seguramente acontecerá muita coisa nos próximos anos, E de tudo quanto é tipo, revoluções, mas também, sem sombra de dúvida, umas merdas do tipo fascismo e companhia. E daí, o que se dever fazer, esperar e deixar andar? Passar à ação. (p.14)
Portanto, quais seriam a responsabilidade no presente, do Intelectual e qual seu papel diante das disputas de projetos políticos atuais em que o autoritarismo, mais uma vez tenta parar a roda da história e nos jogar nos porões da idade média? Quais as articulações possíveis entre Raça, Condição Humana e Produção de Conhecimento.
É certo, que a priori deveríamos estar felizes, pois dirão que a realidade dos Estados Unidos das décadas de 1955 a 1968, é profundamente diferente do Brasil de 2019.
Talvez digam, que deveríamos estar felizes com o Festival de Cinema Negro, com as políticas de ações afirmativas para negros, com a nossa miss negra, representantes negros, intelectuais negros, religião negra, que fazem parte da contemporânea representação do Brasil.
Sim, deveria estar feliz. Mas não estou. Nunca nos encarceraram tanto, nunca nos mataram e criminalizaram tanto, uma política organizada para nosso genocídio ou a Necropolítica como aprendemos com Mbembe.  Assim como o pavor vivido pelo zelador negro, aqueles olhos, o desespero, é algo constituinte de meus dias, como James Baldwin me sinto testemunha de todo o terror que essa sociedade é capaz de realizar...
De todos os sentidos, a nossa sociedade privilegiou a visão, como receptora do mundo em que vivemos. É, também, por meio dos olhares dos outros que nos constituímos quanto sujeitos, que dizemos ou tentamos dizer aquilo que somos.
I’m not your negro, inicia essa experiência a partir do campo semântico da existência humana, daquilo que caracteriza o presente na ação verbal.
Ser, que diz respeito daquilo que sou, porém nos revela ao mesmo tempo uma negação, um rompimento, com o olhar e a posse do outro, sobre seu corpo e Existência.
Encontramos em todos os tempos enfrentamentos aos valores da Modernidade- Colonialidade, que inventou a Raça e junto com ela um modelo de ser, estar e principalmente de conhecer e olhar o mundo. Tal parâmetro de real nos mantém cativos e tem impactado a psique de todos. É preciso estar atento as armadilhas expostas no caminho.
 As histórias de vida entrelaçadas de Malcon x, Marthin Luther King, James Baldwin e de outros intelectuais/militantes, presentes no documentário nos indicam Olhares capazes de produzir abalos ao modelo de pensamento euro-ocidentais. Olhares experimentados, carregados de experiencias e estão a exigir uma epistemologia sensível aos saberes que nascem da ação e nos convidam a sulear nossas mentes.
 Segundo a Etimologia, a palavra intelectual deriva do latim intellectualis, adjetivo que indica aquilo que em filosofia ocidental, diz respeito ao intelecto na sua atividade teórica, ou seja, separado da experiência sensível - esta considerada como de grau cognitivo inferior. Percepção cujas origens se remetem ao momento em que Platão exila o pensar do espaço público, da Ágora, do mercado.
Intelectual renovado pela ciência nova, Moderna que pretensamente verdadeira, universaliza modos de produção de conhecimento que dispensou, reduziu, ausentou os saberes e corpos das populações originárias e das populações de origem africana.
            Campo de pensamento profundamente conservadora, mas não arcaica já que se prolifera em qualquer instituição escolar de nossa sempre renovada colonialidade, não de nosso país, mas do mundo global em que vivemos, espaços organizados para o adormecimento desse intelecto ou produzido unicamente para a manutenção de uma cultura hegemônica e por ser hegemônica é patriarcal colonial e capitalista.
Em minhas leituras sobre Foucault, pude compreender que Todxs participamos dessa organização, da violência, dos ganhos e das misérias de uma sociedade racializada e letrada. Nos transformamos em sujeito-moeda, sujeito- máquina, sujeito-monstros.
Ações que nos distanciam da transgressão de corpos, que nos aproximem da liberdade, confundida com distribuição de status, prestígio e poder.
Liberdade ou consumo, liberdade ou barbárie parece que nessa luta, que precisa estar mergulhada na transformação, fomos ganhos por nosso desejo de pertencer a esses lugares de distribuição de prestígio e poder,
Por incrível que possa parecer, como antigos africanos nos deixamos transformar em mercadoria, livremente participamos de negociações, negociatas, na qual nos eximimos do destino dos “nossos” iguais, pervertidos, desviados, moralmente desclassificados.
Dizemos sobre ela,  A Raça, o suficiente para que esse  dizer não ameace os nossos status e posições, como em um teatro pequeno burguês é possível produzir uma catarse, que acalme nossa alma torturada, nos seus encontros e congressos negros, sobre os farrapos daqueles que foram enforcados há pouco  agonizando em nossa frente, seus pés se debatem, pois deixaram de alcançar o chão, mas somos seres vaidosos preocupados com nossos compartilhamentos, aquela promoção, a ideia de que se eu fizer a coisa certa, não cometer o mesmo erro, possa receber o prêmio tão merecido a fama, o carro novo, ou um cargo público, como veem assim como vocês, muitos representantes ou intelectuais do campo antirracista , com suas caras pretas, sua estética black, também podem negociar a liberdade dos seus, por aquilo que o capital pode lhes oferecer.
E lhes pergunto, discursar sobre uma categoria estruturante para nossas vidas de modo que possamos escolher, colher os temas, bem expostos como produtos em uma prateleira de supermercado, faz de nós um intelectual?
Minha hipótese. Estamos longe da promessa platônica do intelectual, de uma verdade que nasce de uma atitude contemplativa diante da vida, focada nos grandes temas que assombram a humanidade. Assustadoramente distantes de intelectuais radicais e como diria Angela Davis, Radical significa simplesmente ir à raiz do problema.
Em verdade, na ânsia de sermos aceitos, de frequentar, nos deixamos transformar  em meros consumidores. Nós re-presentamos, confundimos nossos esforços de ascensão social com vitórias daqueles que dizemos representar. Se necessário traímos aqueles que teimaram em nos instruir para liberdade e nesse intento doaram suas vidas.
Na atualidade há uma prática constante dessa Intelectualidade Representativa, se portam como agenciadores, consumidores, em um vocabulário colonial – capitães do mato, guardiões do tempo, alegoria aquilo que o Capital sempre nos roubou.
 Estes se afastaram ou nunca estiveram com os pés cravados na ação intelectual que para os Condenados da Terra precisa ser transformadora. Pensamento e ação, não são negociáveis, precisam estar irrevogavelmente em fusão, total simbiose, pois este é o que une intelectuais que compõe o campo do agir e pensar, porém isso significa o enfrentamento a supremacia racial branca. Pergunto-me, quem está disposto a pagar o preço?
O documentário apresentado há pouco, sugere uma quebra na ideia de Raça, dispõe que nem todos os negros agem como pai Thomás, I’am not your Negro,   ao mesmo tempo que nos evidencia o preço que pagaram intelectuais como Malcom X, Marthin Luther King _ Pagaram com a vida, o preço por lutar por uma transformação radical do mundo que lhes tocou viver.
Porém, Independente de nossas posições, não vivemos sempre com medo, já que ainda que entreguemos nossa liberdade, bem no fundo mesmo aqueles, que carregam uma máscara branca sobre sua pele negra, aqui uma citação direta ao livro Pele Negra e Máscaras Brancas de Fannon, ou ainda um campo cognitivo branco _ opressor _ um inimigo, o agente colonial pode estar ao seu lado,  fazer parte de sindicatos, entidades e associações, pode ser seu amigo, já com a lâmina pronta para decepar a sua cabeça, ou ser aquele que te mira frente al espejo y te desea Buenos días compañera.
Os  agentes sabem em seu íntimo, que sua obediência não lhe dá garantias, pode ser surpreendido no jogo dos tronos a qualquer momento, por isso sua sina é atualizar-se sempre, tornar-se anfíbio, camaleão, de modo que  possa surpreender a seus amos e mostrar-lhes que seus olhos, são os olhos de seu amo, que seu coração, bate na mesma direção de seu senhor. Sujeitos bem domesticados que desde a educação infantil serão adestrados, de modo que saibam a quem devem prestar obediência.
Pagar o preço desse enfrentamento, significa ter a sua vida e da sua família destruída, estar em fuga, a morte física ou simbólica daqueles que ousem  transgredir.
Em uma atividade na escola em que leciono, contava a meus estudantes o fascínio dos colonizadores em esquartejar corpos, colocá-los em uma bandeja e desfilá-lo pelo vilarejo. Ao contar-lhes sobre a história de Zumbi, lhes perguntei por que os colonizadores têm essa necessidade sádica. Alguns responderam timidamente : para servir de exemplo,  amedrontar.
 Nós estamos dispostos a pagar o preço, Marthin Luther King dizia_ aquele que não está disposto a morrer por uma causa não é digno de viver. Uma frase, bonita impactante, mas sem sentido dentro de relações líquidas como bem nos indica Bauman.
Segundo Foucault,  a raça provoca a segregação e produz através da separação biológica dos corpos, que pode dar se através do fenótipo, classe, ou gênero privilégios  a uma parcela da população e a exclusão para aquela que não pode refastelar-se com eles,  mas para tanto precisaremos  do silêncio criminoso de brancas e brancos que não se importam com o que ocorre conosco, dormem sonos profundos na tranquilidade de não ser Um Negro.
Eu lhes pergunto, qual a aproximação deste intelectual negro de classe média e de um branco, ambos não querem perder o que conquistaram ou aquilo que podem vir a conquistar.
Eu sei, vocês não querem voltar para casa, sem a ação catártica, sem chorar, sem sentir-se dentro de seu humanismo piegas produzido na carnificina. Mas minha sina, não é levá-los a catarse, para que logo mais voltem para suas cenas contemplativas, o pensamento crítico, causa estranhamento, insônia, nojo e na maioria das vezes fuga, até quando vamos continuar fugindo.
Precisamos de intelectuais e não de agenciadores, sujeitos dispostos a pagar o preço e fazer os enfrentamentos necessários, a começar por si mesmo, pois a supremacia racial branca nos constituí por inteiro, cada poro, cada pensamento, cada fio de cabelo negro, da pontinha do pé até às nossas entranhas contém o DNA da supremacia racial branca, organizadora das instituições e das relações interpessoais. Ela somos eu e você.
A liberdade e justiça de nossos corpos, não pode estar vinculada às ideias de sucesso e prestígio daqueles que se colocam no lugar de representante. Portanto, o que precisamos é de intelectuais dispostos a romper com o império cognitivo e de profunda subordinação que impera em nossas mentes e corações, nosso passaporte para Harvard, Complutense de Madri, Sorbone ou Minho.
Muitos que celebram Angela Davis, Malcom X, Nelson Mandela, acostumados com financiamentos da Fundação Ford, Fundação Kelogs, ou Open Socayte de George Soros, não estariam com elas no momento em que suas vidas foram profundamente destruídas.
Quem de vocês estaria com Angela Davis, professora universitária e participante dos Panteras Negras, que foi acusada de assassinato, perseguida por todo EUA. Ao ser interrogada sobre sua fuga, ela responde – Você sabe o que se permite fazer com um negro desse país quando ele é acusado de um crime.
Do outro lado, quem estaria ao lado do Pimpinela Negra, um grande terrorista sul africano, depois transformado no bom mocinho ganhador do prêmio nobel da paz Nelson Mandela? Ao sujeito suspeito de crime é possível suspender as garantias republicanas e promover seu linchamento. Afinal, vocês sabem como se tratam os negros.
Ao trabalhar com políticas da memória é muito importante perceber aquilo que a hegemonia cultural celebra e aquilo que ela nos faz esquecer ou como nós, em nosso cotidiano dispomos dos espaços, das celebrações e dos rituais para o esquecimento de nossos cadáveres, daqueles que estavam entre nós há pouco.
Portanto, a Raça é a engenhosidade desse biopoder que dispomos em sociedade, porém os gatilhos, o poder para que ela perdure no ocidente há 500 anos, todos nós dispomos, fazemos parte, no silêncio, no entremeio de nossas ações e discursos, o silêncio criminoso daquele que é testemunha sabe de tudo, mas por conveniência, covardia, assimilação, silencia.
E como fim, disponho que  sejamos capazes de nos olharmos no espelho perceber que ao longo do tempo nos tornamos aquele sujeito que dizemos  combater_ o Senhor de Escravo, o Pequeno Burguês, o Macho escroto, o fascista, ou estaremos fadados a conviver para o resto de nossas vidas, sem nunca saber como é viver sem o julgo da escravidão.
Dizem que o intelectual é aquele que está a frente de seu tempo. Discordo de tal afirmação. Eles estão profundamente comprometidos, encharcados com o seu tempo.
Apenas, temos a coragem de dizer-enfrentar aquilo que os demais fingem não saber, pois estão presos dentro de seus interesses, mediocridade e zonas de conforto. Para tanto, tenho a nítida impressão que em todos os tempos, a nossa humanidade, a nossa condição humana é colocada a prova, sofre riscos, mas há sempre um substrato, um interdito, em que dizemos para si, o que somos nós ou o queremos dessa bagagem que estamos fadados a carregar até o último de nossos dias.
Canção da Liberdade _ Bob Marley

Velhos piratas, sim, eles me roubaram
Me venderam para navios mercantes
........

Libertem-se da escravidão mental
Ninguém além de nós mesmos pode libertar nossas mentes
Não tenha medo da energia atômica
Porque nenhum deles pode parar o tempo
Até quando vão matar nossos profetas
Enquanto nós permanecemos de lado, olhando?
..........
Ajude-me a cantar
Estas canções de liberdade?
Pois, tudo que eu sempre tive
Canções de redenção
Canções de redenção
Canções de redenção

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