domingo, 6 de outubro de 2019
PONTO DE ENCONTRO
Por Cristiane Mare da Silva
Neste
momento, busco um balanço dessa jornada que se iniciou tragicamente em março de
2018. Cuja as raízes, porém, se estendem para dez anos antes, quando parti
para uma jornada para dentro de mim mesma. Tudo isto resultou em um longo
esforço de desconstrução cognitiva.
Nela,
me revisitei do ponto de vista histórico e cultural. Refleti acerca de uma
colonialidade que habita os rincões de nossa mente. Dito de outro modo, ao
realizar um balanço dessa tragédia coletiva, vivida de forma pessoal, me
pergunto: onde e como fica a nossa saúde mental? Minha percepção: é impossível
fugir dos efeitos psíquicos do racismo.
Somos
capazes de relatar dramas, publicá-los, colocá-los nas redes e transformá-los
em produtos culturais vendíveis e de sucesso. Mas nossos demônios nos
acompanham e o que fazemos com eles?
Em
uma ação filosófica restauradora, acolheríamos nossos demônios e contradições,
no sentido de um autoconhecimento. Não se trata de moralizar nossas ações e
pensamentos (agirmos como a palmatória do mundo), mas de conhecermos seus
fundamentos a fim questionarmos nossas escolhas. Por que pensamos como pensamos
e agimos como tal.
Afirmamos,
que as pessoas estão alienadas dos processos sociais. Na verdade, somos alienados,
apartados no decorrer de nossas vidas de nós mesmos. Habitantes de um corpo que
não conhecemos, que produzem em nós resultados químicos, que se traduzem em
emoções que nos são alheias, pois somos seres fragmentados.
Com
infâncias profundamente violentas, acreditamos que a participação em movimentos
sociais, universidades, espaços coletivos repletos de pessoas profundamente
doentes, portadoras de uma autoestima precária e do ponto de vista histórico
assimilados, serão capazes de nos libertar de todo sofrimento. Ledo engano.
Segundo
a psicóloga Dorothy Briggs, em seu livro A Autoestima do seu filho “Com
frequência só o reexame dos velhos padrões absorvidos na infância pode nos
fazer abandonar as máscaras que achamos que devemos usar. Verificamos para
nossa surpresa, que elas já não têm valor de sobrevivência”.
É certo que a saúde mental é negada pelo Estado
e negligenciado por indivíduos que entre a parcela do financiamento a juros escorchantes
de um carro (mais de 300% ao ano) ou de algo que lhe é palpável - a saúde mental que impacta em seu cotidiano,
na capacidade de resolução de conflitos, dialogar, produção de autoestima, um
sujeito com autoestima não sentirá necessidade de destruir o outro - na balança, é certo, os sujeitos optarão
necessariamente pelo primeiro, pois confere status, prestígio, em uma sociedade
em que as relações mercantis dão a tônica. Você vale o que tem!!
Não
quero invisibilizar a disputa bruta pelo poder, em especial de projetos
políticos que ocorrem no interior de espaços coletivos, em especial nas
comunidades negras, já que isso é tudo que lhes resta: a disputa por
representação!! Entretanto, para que eu pudesse restaurar-me, compreender a
infinita dor que me causaram, antigos/as companheiras/os de
jornada, precisei compreendê-los, não como mulheres e homens maus, dentro da
lógica punitivista, de uma sociedade totalitária.
Decidi
revisitar-me. Para tanto, foi necessário buscar outras ferramentas, olhá-los a
partir da história, psicologia, política e o quanto animais que somos, do ponto
de vista biológico, de como as emoções violentamente construídas afetam,
transformam nosso corpo e nosso campo cognitivo.
Nessa
tentativa de traduzir essa experiência
que transformou profundamente a minha existência, mesmo no mais singelo esforço
de continuar, de entrar em um café e ao vislumbrar uma mulher negra, com seu cabelo
black power, não entrar em pânico, respiração ofegante e, por vezes, as pernas paralisadas, eu havia apreendido que
a supremacia racial era sem dúvida a grande vencedora.
Os
rostos, até então tão familiares, carregados de sentidos, eram os mesmos que nos caçavam (a mim e minha
família) como animais. Não foi esta a intenção de uma célebre escritora negra,
ao dar o endereço de minha casa em rede nacional? Ou de uma célebre militante
feminista catarinense ao fazer a descrição de meu companheiro em seu perfil no
Facebook recheado de narcotraficantes? Essa encruzilhada me levou a duas
tentativas de suicídio, pois desejava que fossem capazes de compartilhar a dor
que eu sentia.
Hoje
sei, que pensamentos organizam nossa prática cotidiana e por isso são um jogo
de disputas, conflitos e política. Mas naquela época percebia tais conflitos
como embates entre projetos antagônicos, como ferramentas no campo do discurso.
Acreditava que no fundo lutávamos na mesma direção.
Compreendi a duras penas, que as pessoas até
expressam um desejo ao projeto político progressista, mas a maioria de nós, está
imerso em pensamentos ultraconservadores,_ moralistas e coloniais.
Submergir
em um processo de desintoxicação é doloroso, denota tempo e paciência, então
optamos pelo caminho aparentemente mais prático: a alienação, a moralidade e a
barbárie. Este caminho nos confere algum
conforto, afinal podemos linchar ou exterminar aqueles, cujas as nossas mãos alcançam. Saciados
em nossa fome de vingança contra qualquer um que possa expiar nossos
sofrimentos, nos olvidamos do sentido revolucionário das ferramentas de luta
por emancipação e transgressão.
Como professora de escola pública
estadual no ano de 2019, tive inúmeros conflitos, no sentido de que minhas
aulas de Espanhol e Literatura, profundamente arraigadas no pensamento crítico desconstrutivista, rapidamente me trouxeram problemas. Fui tachada de
extremista, comunistinha, não demorou muito para que uma avó de um estudante,
viesse questionar-me acerca dos
conteúdos, já que para ela não lhe parecia correto trazer a questão do racismo
em uma aula de espanhol. Para mim, é simplesmente impossível dar aula de
espanhol sem encharcar o meu estudante da diversidade cultural presente na
América Latina e o ataque ao mito fundador do Ocidente - sua superioridade cultural, que se pulveriza
através da Raça.
Outros
conflitos ocorreram com um e outro estudante, sempre por conta da metodologia
abordada na apresentação dos conteúdos.
Me
chamou atenção, que embora eles me denominassem “comunistinha”, quando a avó
preocupada veio conversar comigo, disse-me que eu odiava pobres. Minha cabeça
deu um giro de 360 graus. Novamente iriam utilizar algo positivo que me
caracterizava: diálogos constantes com os estudantes em torno de seu
pertencimento de classe!!
Havíamos
lido um poema de García Lorca, “Medio Pan y un Libro”, as músicas em torno de
um fortalecimento da possibilidade de pertencer a uma história que nos é comum,
como nos versos da Canção Latinoamérica Calle 13: “Soy lo que dejaron, Soy toda
la sobra de lo que te robaron.”
Frente
a uma educação voltada para nos odiarmos, na atividade de interpretação do
poema de García Lorca, estudantes me
perguntaram se uma pessoa não poderia deixar de ser pobre? Lhes contestei refletindo
sobre a possibilidade de encontra-los nos próximos 10 anos, e de vê-los proprietários
de banco, multinacional ou latifundiário.
Como
silenciaram, voltei a repetir García Lorca: “Bien está que todos los hombres
coman, pero que todos los hombres sepan. Que gocen todo el espíritu humano
porque lo contrário es convertirlos en máquinas al servicio de Estado, es
convertirlos en esclavos de una terrible organización social.” Lhes disse que a possiblidade de se tornarem ricos era
quase nula, o que podemos alcançar é uma qualidade de vida e não a riqueza. Quebrado
o encanto da teologia liberal da prosperidade, alguns estudantes se enfureceram
e se dirigiram a direção da escola bradando: a professora odeia os pobres. E a notícia
se espalhou, desculpem-me pelo arcaísmo: viralizou!!!
Esse
modus operandi está em toda parte. Este poder de destruir o outro, aquele que se torna oponente, o adversário, é um poder que perpassa entre todxs, sejam
meus estudantes de ensino médio de uma escola pública , em um estado que votou
majoritariamente no Bolsonaro e em sua plataforma de governo, sejam sindicatos,
estudantes de universidade, professores universitários ou ativistas de
movimentos sociais. Todos parecem partilhar, estar imersos na mesma semântica,
nos campos de louvor a morte do inimigo...
Então,
estou afirmando que mesmo os setores aparentemente progressistas do Brasil, não
são capazes de contrapor o espectro profundamente violento das relações impostas
pelos ideais do ultra conservadorismo, pois estes estão encharcados das mesmas
categorias conservadoras das quais dizem combater: a mobilização de componentes
morais, de tudo que é tabu, a rapidez em que mentiras destroem vidas. Há um leque de substantivos indefensáveis acionados, ao desejar aniquilar o outrx, estuprador, corrupto, pedófilo, alguém
que odeia os pobres, como resultado_ Extermínio.
Para tanto, o direito a aniquilação do sujeito
e sua total animalização, de modo que o mesmo não tenha direito ao justo
processo legal, pois ele entra em um limbo onde perde seus direitos, ou em
outras palavras a Racialização do
adversário , portanto conferiram a mim e
ao meu companheiro o mesmo fim, que a Lava Jato e a elite brasileira impuseram
ao Luís Inácio Lula da Silva. Primeiro o linchamento moral, depois a
perseguição, a asfixia econômica, pois chega um ponto em que você se vê sem
condições financeiras, pois vai perdendo tudo o que tem.
Em
um dos processos que envolve meu companheiro, meu blog de poesia, toda a minha ação
em torno da emancipação das mulheres, meu nome, é citado de um lado a outro
(criminalizado), porém nunca fui chamada para ser ouvida.
Outro
caso emblemático, a morte do reitor da
Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier Olivo. Todxs sabemos
que sua morte não está inscrita nas mãos apenas das autoridades públicas envolvidas.
Lembro-me como se fosse hoje, o cerco que os professores universitários que se
opunham a sua gestão e os estudantes fizeram contra ele, sem ao menos dar-lhe o
direito a defesa (o mesmo fora acusado de corrupção) , nossa cultura
punitivista vai deixando seus rastros, estamos vivendo no asfalto o mesmo
tratamento dado aos jovens negros da periferia, uma cultura punitivista e sem
direito a defesa, em que o fim da existência, o corpo inscrito no chão é a
regra. O que importa é o alvo a ser combatido e os interesses postos na mesa.
O
Lula, foi condenado por contrapor-se e por enfrentar a hegemonia racial branca,
por cumprir a Constituição Cidadã de 1988, e negar-se a ter como projeto de governo a
distribuição de riqueza entre seus apariguados e conferir aos demais
brasileiros a conta do banquete de uma
vida forjada em privilégios.
O Brasil, não suporta, projetos políticos
emancipadores em que a Raça e seus mecanismos sejam desmascarados, pois a Raça
enquanto técnica estrutura o plano de governo de Bolsonaro, foi e é fundamental
para a parcela da população que ele representa, o ódio ao outro, a exclusão, o
crescimento avassalador das igrejas neopentecostais, que se percebem como a
cultura eleita, a classe média que se
ressente da ascensão do pobre, mas em especial do negro como perda de prestígio
e de como isso lhe afeta emocionalmente.
Raça
é o mecanismo, a técnica utilizada para nos odiarmos, para caçar nossas
lideranças como cães, já que está no cerne da nossa percepção sobre o
outro. Assim, seja Nelson Mandela 27 anos preso, por ser símbolo da luta contra
o Apartheid, Angela Davis ativista afro-americana, acusada da organização de
assassinatos, a prisão de Gandhi por organizar levantes contra os colonos
ingleses, o assassinato de Martin Luter King e Malcon X, a prisão de Milagro Sala ativista argentina acusada de
tentativa de homicídio e Julian Ashange, acusado de cometer crime sexual, todas as lideranças reais da América Latina foram criminalizadas, presas ou respondem a processos criminais.
Todo
aquele que enfrenta a desigualdade para além da representação ou do uso de
plataformas sociais, como vitrines para ascensão social individual, o que
significa o enfrentamento a supremacia racial branca, tem como quinhão a sua
destruição, pois nas atuais vias de circunstância parece não haver lugar para a
projeção do pensamento crítico e da transformação radical, que necessariamente precisa enfrentar as amarras
euro-ocidentais, minhas experiências demonstram a dificuldade desses enfrentamentos,
porém salvo alguns momentos a
resistência e esperança não deixaram de fazer parte da minha essência.
Quanto
educadora, eu percebi que a maioria dos meus estudantes de ensino médio já
estavam imersos ao sonambulismo tão comum a toda educação brasileira,
estruturada para o adormecimento do sujeito: minhas aulas não eram bem-vindas. Fui
me reposicionando, observando as turmas que estavam dispostas ao diálogo, onde
deveria reposicionar os conteúdos e em especial o modo como os apresentava,
havia aprendido com a minha exclusão do movimento feminista, do movimento negro
e com as estudantes do NEAB- UDESC, que nem todxs estão prontos ou desejam
encontrar-se com uma educação transformadora , é preciso estar atenta e
respeitar a recusa.
Tive
algumas supresas, em outubro de 2019 ao corrigir as redações dos meus
estudantes sobre a colonização da Hispano América, sorri, joguei as sementinhas
da dúvida sobre a história que lhes contaram e eles acolheram. Ao chegar em um
grupo de segundo ano estavam eufóricos. “Profa, precisamos falar contigo, só a
professora nos entende, é algo muito importante.” Pedi para fazer a chamada e
despejaram o enorme conflito com a professora de História. “Ela é contra as
cotas,” e para ela “os brancos sofrem mais que os pretos nesse país.”Não riam!!
Mas eles a enfrentaram. Eles todxs, brancos e
negros, me segurei para não chorar, são momentos tão raros a solidariedade entre
esses grupos, mas venho enfatizando com eles que todos somos racistas e
sexistas, essa cultura afeta a todxs mas
alguns grupos são mais prejudicados que outros.
Não
podemos mudar 400 anos de escravidão, uma mentalidade que acostumou-se a
perceber diferenças biológicas, como sinal de distinção, mas podemos escrever
uma história diferente daqui para frente, e os danados estão nessa pegada. A
professora foi infeliz em seus
comentários. Eles estavam tão redondinhos, que conversamos sobre o Michel Foucault
e sua compreensão sobre a Raça.
Lembrei
de um colega branco encardido do qual desenvolvemos uma relação de amizade e confiança, e
seu estranhamento frente os privilégios da branquitude, e de como uma outra professora
compreendeu que parte de minhas desavenças com alguns estudantes são em verdade conflitos raciais.
Outras
estudantes ao discutir sobre sexualidade feminina, me convidaram a orientá-las.
Não sabia se podia atender a esse pedido. Afinal em que poderia ajudá-las, como
agiriam se soubessem da minha história, e da criminalização das minhas ações,
de modo que varreram o meu nome da história de Santa Catarina, é como se eu
nunca tivesse existido: nesses momentos sempre penso em Angela Davis _ O
que significa ser criminoso nesse país?
Ao mesmo tempo também cheguei na escola
profundamente machucada, e por incrível que pareça, olho para trás e percebo
como me ajudaram a cicatrizar algumas feridas e me fazem ter esperança.... Se
não fosse a segregação, poderíamos aprender mais uns com os outros, desenvolver
solidariedade, empatia mas há uma barreira enorme que separa
nossas vidas, uma vez e outra esses grupos se cruzam, em relações de não mando
e uma vez e outra somos capazes de desenvolver relações saudáveis. Parafraseando
Paulo Freyre, pensamentos transformam as pessoas e as pessoas transformam o
mundo.
Palhoça,
06 de outubro de 2019.
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