PONTO DE ENCONTRO




Por Cristiane Mare da Silva


Neste momento, busco um balanço dessa jornada que se iniciou tragicamente em março de 2018. Cuja as raízes, porém, se estendem para dez anos antes, quando parti para uma jornada para dentro de mim mesma. Tudo isto resultou em um longo esforço de desconstrução cognitiva.
Nela, me revisitei do ponto de vista histórico e cultural. Refleti acerca de uma colonialidade que habita os rincões de nossa mente. Dito de outro modo, ao realizar um balanço dessa tragédia coletiva, vivida de forma pessoal, me pergunto: onde e como fica a nossa saúde mental? Minha percepção: é impossível fugir dos efeitos psíquicos do racismo.
Somos capazes de relatar dramas, publicá-los, colocá-los nas redes e transformá-los em produtos culturais vendíveis e de sucesso. Mas nossos demônios nos acompanham e o que fazemos com eles?
Em uma ação filosófica restauradora, acolheríamos nossos demônios e contradições, no sentido de um autoconhecimento. Não se trata de moralizar nossas ações e pensamentos (agirmos como a palmatória do mundo), mas de conhecermos seus fundamentos a fim questionarmos nossas escolhas. Por que pensamos como pensamos e agimos como tal.
Afirmamos, que as pessoas estão alienadas dos processos sociais. Na verdade, somos alienados, apartados no decorrer de nossas vidas de nós mesmos. Habitantes de um corpo que não conhecemos, que produzem em nós resultados químicos, que se traduzem em emoções que nos são alheias, pois somos seres fragmentados.
Com infâncias profundamente violentas, acreditamos que a participação em movimentos sociais, universidades, espaços coletivos repletos de pessoas profundamente doentes, portadoras de uma autoestima precária e do ponto de vista histórico assimilados, serão capazes de nos libertar de todo sofrimento. Ledo engano.
Segundo a psicóloga Dorothy Briggs, em seu livro A Autoestima do seu filho “Com frequência só o reexame dos velhos padrões absorvidos na infância pode nos fazer abandonar as máscaras que achamos que devemos usar. Verificamos para nossa surpresa, que elas já não têm valor de sobrevivência”.
 É certo que a saúde mental é negada pelo Estado e negligenciado por indivíduos que entre a parcela do financiamento a juros escorchantes de um carro (mais de 300% ao ano) ou de algo que lhe é palpável -  a saúde mental que impacta em seu cotidiano, na capacidade de resolução de conflitos, dialogar, produção de autoestima, um sujeito com autoestima não sentirá necessidade de destruir o outro -  na balança, é certo, os sujeitos optarão necessariamente pelo primeiro, pois confere status, prestígio, em uma sociedade em que as relações mercantis dão a tônica. Você vale o que tem!!
Não quero invisibilizar a disputa bruta pelo poder, em especial de projetos políticos que ocorrem no interior de espaços coletivos, em especial nas comunidades negras, já que isso é tudo que lhes resta: a disputa por representação!! Entretanto, para que eu pudesse restaurar-me, compreender a infinita dor que me causaram, antigos/as companheiras/os de jornada, precisei compreendê-los, não como mulheres e homens maus, dentro da lógica punitivista, de uma sociedade totalitária.
Decidi revisitar-me. Para tanto, foi necessário buscar outras ferramentas, olhá-los a partir da história, psicologia, política e o quanto animais que somos, do ponto de vista biológico, de como as emoções violentamente construídas afetam, transformam nosso corpo e nosso campo cognitivo.
Nessa tentativa de  traduzir essa experiência que transformou profundamente a minha existência, mesmo no mais singelo esforço de continuar, de entrar em um café e ao vislumbrar uma mulher negra, com seu cabelo black power, não entrar em pânico, respiração ofegante e, por vezes,  as pernas paralisadas, eu havia apreendido que a supremacia racial era sem dúvida a grande vencedora.
Os rostos, até então tão familiares, carregados de sentidos,  eram os mesmos que nos caçavam (a mim e minha família) como animais. Não foi esta a intenção de uma célebre escritora negra, ao dar o endereço de minha casa em rede nacional? Ou de uma célebre militante feminista catarinense ao fazer a descrição de meu companheiro em seu perfil no Facebook recheado de narcotraficantes? Essa encruzilhada me levou a duas tentativas de suicídio, pois desejava que fossem capazes de compartilhar a dor que eu sentia.
Hoje sei, que pensamentos organizam nossa prática cotidiana e por isso são um jogo de disputas, conflitos e política. Mas naquela época percebia tais conflitos como embates entre projetos antagônicos, como ferramentas no campo do discurso. Acreditava que no fundo lutávamos na mesma direção.
 Compreendi a duras penas, que as pessoas até expressam um desejo ao projeto político progressista, mas a maioria de nós, está imerso em pensamentos ultraconservadores,_ moralistas e coloniais.
Submergir em um processo de desintoxicação é doloroso, denota tempo e paciência, então optamos pelo caminho aparentemente mais prático: a alienação, a moralidade e a barbárie.  Este caminho nos confere algum conforto, afinal podemos linchar ou exterminar aqueles, cujas as nossas mãos alcançam. Saciados em nossa fome de vingança contra qualquer um que possa expiar nossos sofrimentos, nos olvidamos do sentido revolucionário das ferramentas de luta por emancipação e transgressão.
            Como professora de escola pública estadual no ano de 2019, tive inúmeros conflitos, no sentido de que minhas aulas de Espanhol e Literatura, profundamente arraigadas no pensamento crítico desconstrutivista, rapidamente me trouxeram problemas. Fui tachada de extremista, comunistinha, não demorou muito para que uma avó de um estudante, viesse  questionar-me acerca dos conteúdos, já que para ela não lhe parecia correto trazer a questão do racismo em uma aula de espanhol. Para mim, é simplesmente impossível dar aula de espanhol sem encharcar o meu estudante da diversidade cultural presente na América Latina e o ataque ao mito fundador do Ocidente -  sua superioridade cultural, que se pulveriza através da Raça.
Outros conflitos ocorreram com um e outro estudante, sempre por conta da metodologia abordada na apresentação dos conteúdos.
Me chamou atenção, que embora eles me denominassem “comunistinha”, quando a avó preocupada veio conversar comigo, disse-me que eu odiava pobres. Minha cabeça deu um giro de 360 graus. Novamente iriam utilizar algo positivo que me caracterizava: diálogos constantes com os estudantes em torno de seu pertencimento de classe!!
Havíamos lido um poema de García Lorca, “Medio Pan y un Libro”, as músicas em torno de um fortalecimento da possibilidade de pertencer a uma história que nos é comum, como nos versos da Canção Latinoamérica Calle 13: “Soy lo que dejaron, Soy toda la sobra de lo que te robaron.”
Frente a uma educação voltada para nos odiarmos, na atividade de interpretação do poema de García Lorca,  estudantes me perguntaram se uma pessoa não poderia deixar de ser pobre? Lhes contestei refletindo sobre a possibilidade de encontra-los nos próximos 10 anos, e de vê-los proprietários de  banco, multinacional ou latifundiário.
Como silenciaram, voltei a repetir García Lorca: “Bien está que todos los hombres coman, pero que todos los hombres sepan. Que gocen todo el espíritu humano porque lo contrário es convertirlos en máquinas al servicio de Estado, es convertirlos en esclavos de una terrible organización social.” Lhes disse  que a possiblidade de se tornarem ricos era quase nula, o que podemos alcançar é uma qualidade de vida e não a riqueza. Quebrado o encanto da teologia liberal da prosperidade, alguns estudantes se enfureceram e se dirigiram a direção da escola bradando: a professora odeia os pobres. E a notícia se espalhou, desculpem-me pelo arcaísmo: viralizou!!!
Esse modus operandi está em toda parte. Este poder de destruir o outro, aquele que se torna oponente, o adversário, é um poder que perpassa entre todxs, sejam meus estudantes de ensino médio de uma escola pública , em um estado que votou majoritariamente no Bolsonaro e em sua plataforma de governo, sejam sindicatos, estudantes de universidade, professores universitários ou ativistas de movimentos sociais. Todos parecem partilhar, estar imersos na mesma semântica, nos campos de louvor a morte do inimigo...
Então, estou afirmando que mesmo os setores aparentemente progressistas do Brasil, não são capazes de contrapor o espectro profundamente violento das relações impostas pelos ideais do ultra conservadorismo, pois estes estão encharcados das mesmas categorias conservadoras das quais dizem combater: a mobilização de componentes morais, de tudo que é tabu, a rapidez em que mentiras destroem vidas. Há um leque de substantivos indefensáveis  acionados, ao desejar aniquilar o outrx, estuprador,  corrupto,  pedófilo, alguém que odeia os pobres, como resultado_ Extermínio.
 Para tanto, o direito a aniquilação do sujeito e sua total animalização, de modo que o mesmo não tenha direito ao justo processo legal, pois ele entra em um limbo onde perde seus direitos, ou em outras palavras a  Racialização do adversário , portanto  conferiram a mim e ao meu companheiro o mesmo fim, que a Lava Jato e a elite brasileira impuseram ao Luís Inácio Lula da Silva. Primeiro o linchamento moral, depois a perseguição, a asfixia econômica, pois chega um ponto em que você se vê sem condições financeiras, pois vai perdendo tudo o que tem.
Em um dos processos que envolve meu companheiro, meu blog de poesia, toda a minha ação em torno da emancipação das mulheres, meu nome, é citado de um lado a outro (criminalizado), porém nunca fui chamada para ser ouvida.
Outro caso emblemático,  a morte do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier Olivo. Todxs sabemos que sua morte não está inscrita nas mãos apenas das autoridades públicas envolvidas. Lembro-me como se fosse hoje, o cerco que os professores universitários que se opunham a sua gestão e os estudantes fizeram contra ele, sem ao menos dar-lhe o direito a defesa (o mesmo fora acusado de corrupção) , nossa cultura punitivista vai deixando seus rastros, estamos vivendo no asfalto o mesmo tratamento dado aos jovens negros da periferia, uma cultura punitivista e sem direito a defesa, em que o fim da existência, o corpo inscrito no chão é a regra. O que importa é o alvo a ser combatido e os interesses postos na mesa.
O Lula, foi condenado por contrapor-se e por enfrentar a hegemonia racial branca, por cumprir a Constituição Cidadã de 1988, e  negar-se a ter como projeto de governo a distribuição de riqueza entre seus apariguados e conferir aos demais brasileiros a conta do banquete  de uma vida forjada em privilégios.
 O Brasil, não suporta, projetos políticos emancipadores em que a Raça e seus mecanismos sejam desmascarados, pois a Raça enquanto técnica estrutura o plano de governo de Bolsonaro, foi e é fundamental para a parcela da população que ele representa, o ódio ao outro, a exclusão, o crescimento avassalador das igrejas neopentecostais, que se percebem como a cultura eleita, a classe média  que se ressente da ascensão do pobre, mas em especial do negro como perda de prestígio e de como isso lhe afeta emocionalmente.
Raça é o mecanismo, a técnica utilizada para nos odiarmos, para caçar nossas lideranças como cães, já que está no cerne da nossa percepção sobre o outro. Assim, seja Nelson Mandela 27 anos preso, por ser símbolo da luta contra o Apartheid, Angela Davis ativista afro-americana, acusada da organização de assassinatos, a prisão de Gandhi por organizar levantes contra os colonos ingleses, o assassinato de Martin Luter King e Malcon X, a prisão  de Milagro Sala ativista argentina acusada de tentativa de homicídio e Julian Ashange, acusado de cometer crime sexual, todas as lideranças reais da América Latina foram criminalizadas, presas ou respondem a processos criminais.
Todo aquele que enfrenta a desigualdade para além da representação ou do uso de plataformas sociais, como vitrines para ascensão social individual, o que significa o enfrentamento a supremacia racial branca, tem como quinhão a sua destruição, pois nas atuais vias de circunstância parece não haver lugar para a projeção do pensamento crítico e da transformação radical, que necessariamente precisa enfrentar as amarras euro-ocidentais, minhas experiências demonstram a dificuldade desses enfrentamentos, porém salvo alguns momentos  a resistência e esperança não deixaram de fazer parte da minha essência.
Quanto educadora, eu percebi que a maioria dos meus estudantes de ensino médio já estavam imersos ao sonambulismo tão comum a toda educação brasileira, estruturada para o adormecimento do sujeito: minhas aulas não eram bem-vindas. Fui me reposicionando, observando as turmas que estavam dispostas ao diálogo, onde deveria reposicionar os conteúdos e em especial o modo como os apresentava, havia aprendido com a minha exclusão do movimento feminista, do movimento negro e com as estudantes do NEAB- UDESC, que nem todxs estão prontos ou desejam encontrar-se com uma educação transformadora , é preciso estar atenta e respeitar a recusa.
Tive algumas supresas, em outubro de 2019 ao corrigir as redações dos meus estudantes sobre a colonização da Hispano América, sorri, joguei as sementinhas da dúvida sobre a história que lhes contaram e eles acolheram. Ao chegar em um grupo de segundo ano estavam eufóricos. “Profa, precisamos falar contigo, só a professora nos entende, é algo muito importante.” Pedi para fazer a chamada e despejaram o enorme conflito com a professora de História. “Ela é contra as cotas,” e para ela “os brancos sofrem mais que os pretos nesse país.”Não riam!!
 Mas eles a enfrentaram. Eles todxs, brancos e negros, me segurei para não chorar, são momentos tão raros a solidariedade entre esses grupos, mas venho enfatizando com eles que todos somos racistas e sexistas, essa cultura  afeta a todxs mas alguns grupos são mais prejudicados que outros.
Não podemos mudar 400 anos de escravidão, uma mentalidade que acostumou-se a perceber diferenças biológicas, como sinal de distinção, mas podemos escrever uma história diferente daqui para frente, e os danados estão nessa pegada. A professora  foi infeliz em seus comentários. Eles estavam tão redondinhos, que conversamos sobre o Michel Foucault e sua compreensão sobre a Raça.
Lembrei de um colega branco encardido do qual desenvolvemos uma relação de amizade e confiança, e seu estranhamento frente os privilégios da branquitude, e de como uma outra professora compreendeu que parte de minhas desavenças com alguns estudantes são  em verdade conflitos raciais.
Outras estudantes ao discutir sobre sexualidade feminina, me convidaram a orientá-las. Não sabia se podia atender a esse pedido. Afinal em que poderia ajudá-las, como agiriam se soubessem da minha história, e da criminalização das minhas ações, de modo que varreram o meu nome da história de Santa Catarina, é como se eu nunca tivesse existido: nesses momentos sempre penso em Angela Davis _ O que  significa ser criminoso nesse país?
 Ao mesmo tempo também cheguei na escola profundamente machucada, e por incrível que pareça, olho para trás e percebo como me ajudaram a cicatrizar algumas feridas e me fazem ter esperança.... Se não fosse a segregação, poderíamos aprender mais uns com os outros, desenvolver solidariedade,  empatia mas há uma barreira enorme que separa nossas vidas, uma vez e outra esses grupos se cruzam, em relações de não mando e uma vez e outra somos capazes de desenvolver relações saudáveis. Parafraseando Paulo Freyre, pensamentos transformam as pessoas e as pessoas transformam o mundo.

                                               Palhoça, 06 de outubro de 2019.

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