CONNEABS - UMA CONSTELAÇÃO DE THINK TANKS A SERVIÇO DA CAUSA DA IGUALDADE

Este ano, o Consórcio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros completará 14 anos de existência desde a sua fundação no III Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros - III COPENE, realizado em São Luis do Maranhão, sob a presidência do imortal Carlos Benedito Rodrigues, o Carlão, coordenador do Núcleo de Estudo Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Maranhão. Entretanto, 2004, não guarda toda a história desta peculiar instituição acadêmica. Seu passado é muito mais antigo. Nos remete a uma mudança significativa trazida por Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Mario de Andrade,  entre outros,  a percepção das relações raciais no Brasil, de uma percepção negativa (Silvio Romero " O negro será sempre símbolo da nossa inferioridade enquanto povo."), para uma abordagem positiva. Como mencionou Freyre em seu prefácio de Casa Grande e Senzala (1933), o problema do Brasil não é a raça, mas a herança da escravidão, monocultura e latifúndio. Das páginas desses pesquisadores emergiu um novo país, uma nova civilização, forjada pela ação positiva das três raças fundadoras. O problema, portanto era determinar a extensão da ação cultural dos africanos na formação do povo brasileiro, essa é  raiz do termo afro-brasileiro e tônica dos primeiros congressos de estudos afro-brasileiros tão criticados por Abdias do Nascimento.

Nos anos 1970, a descoberta da África por conta da repercussão das lutas por independência das ex-colônias portuguesas, uma mudança significativa na política exterior brasileira , sob a presidência do General Ernesto Geisel (1974-1979), em uma perspectiva mais autônoma em relação ao Estados Unidos e demais potências ocidentais, a reorganização do Movimento Negro, que abraça o pan-africanismo como uma narrativa contra-hegemônica ao mito da democracia racial brasileira, fez expandir entre nós os centros de estudos africanos, nosso reconhecimento a Mario Maestri, José Maria Nunes Pereira, Kabengele Munanga, Carlos Serrano , e muitos outros, pioneiros deste campo.

Contudo, o movimento que hoje participamos e somos protagonismos é um desdobramento de uma das ações de maior visibilidade do campo antirracista do Brasil, a Marcha dos 300 Anos da Imortalidade de Zumbi dos Palmares de 1995, cujo o principal resultado é o reconhecimento por parte do Estado brasileiro da natureza racista das relações sociais em nosso país e da necessidade de efetivação de medidas para supera-las. Ato contínuo, Fernando Henrique Cardos, então presidente da República, criou o Grupo de Trabalho Interministerial para o Desenvolvimento da População Negra e, em 1996, o Seminário Internacional Multiculturalismo e Política da Ações Afirmativas no Brasil. entre inúmeros interlocutores, que incluía Arnaldo Jabor, estavam acadêmicos negros de diferentes partes do país. Das nossas reuniões nasceu a Articulação Nacional de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, nosso primeiro encontro em 2000, tendo como cicerone o Centro de Estudo Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, sob coordenação do professor Ubiratan de Araújo, o saudoso Bira Gordo e apoio da Fundação Cultural Palmares, sob presidência do Professor Carlos Moura. Lembremos que no final do Governo FHC, o Ministério da Educação era o centro da resistência institucional a proposta do próprio Governo de adoção de ações afirmativas no acesso ao ensino de graduação nas instituições federais de educação superior. Paulo Renato, ministro de triste memória, propôs com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (o BIRD), o financiamento de cursinhos pré-vestibulares, por meio do Programa Diversidade na Universidade. Com o apoio de Jeruse Romão, então assessora do Ministério, novamente fomos chamados a participar, e organizou-se o II Encontro de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros. É este grupo de pesquisadores de NEABS que dará origem ao Comitê Técnico Nacional para Assuntos Relacionados a Educação dos Afro-Brasileiros (CADARA/MEC), a partir de 2003, tendo como interlocutores governamentais, Eliane Cavalleiro, Andréa Lisboa, Valter Silverio e Déborah Silva Santos.
O Consórcio propriamente dito surgiu de uma reunião de trabalho organizado pelo NEAB da Universidade Federal de São Carlos e Ação Educativa, presidida por Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, no sentido de elaborar estratégias para implementação da Diretrizes Nacionais para Educação das Relações Etnico-Raciais e Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, elaborada pela Professoras e conselheiras  Petronilha Beatriz, Chiquinha Novaltino, Jamil Murad,  aprovada pelo Pleno do Conselho Nacional de Educação , ainda em 2003. Assim 2014, não foi o início, mas o ponto de chegada de uma história que envolveu muitos indivíduos e instituições e que demarca o campo de atuação dos neabs no ponto de encontro entre governos, universidades e sociedade civil.

2003, ano da posse de Luis Inácio Lula da Silva, presidente da República, também foi o início da adoção de políticas de ações afirmativas por diferentes universidades pública, cujos os simbolos foram a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade de Brasília, Universidade Estadual da Bahia, Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, Universidade Federal de Alagoas, Universidade Estadual de Londrina, Universidade Federal do Paraná, os coordenadores de NEABS destas instituições, a presidência da ABPN, sob Nilma Gomes, Consórcio dos NEABS, desse que vos escreve, os parceiros citados acima, mais Ivair Augusto dos Santos, então Coordenador de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, foram fundamentais para duas iniciativas estratégicas o Programa Brasil Afro-Atitude do Ministério da Saúde, com que permitiu a distribuição de bolsas a estudantes cotistas e o Programa de Ações Afirmativas para População Negra nas Instituições Federais e Estaduais de Ensino Superior, que contribuiu para fortalecimento dos NEABS, em troca de apoio na implementação da Lei Federal 10.639/03. Soma-se a estas ações o Programa de Bolsas de Iniciação Científica para Estudantes de Ações Afirmativas (PIBIC-AF), fruto da parceria entre a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Técnológico (CNPq). Coube a SEPPIR, em especial na gestão da saudosa Luisa Helena Bairros, o desenvolvimento de uma linha específica de investimento, foco na Lei Federal 10.639/03, no Programa de Fomento a Extensão Universitária (PROEXT).Devido a estas iniciativas, mas não só, expandimos os núcleos de estudos afro-brasileiros para todos os estados da federação.
Como muitos da minha geração, faço parte daqueles que acreditaram e acreditam que não responsabilidade, trabalho duro e disciplina nos dariam uma carreira e uma perspectiva de futuro. Nós somos aqueles que foram iniciados no Movimento Negro nos anos 1980, graduamos e nos qualificamos nos anos 1990 e, a partir desta década passamos a ocupar os cargos de docência  universitária.
Entretanto, aos assumirmos nossas funções, nos deparamos com o racismo institucional presentes em nossas unidades de ensino. Não tínhamos bolsistas, espaço físico, suporte para pesquisa sobre temas relativos a África e suas diásporas no Ocidente. Em suma, nossas preocupações não tinham lugar na tradição acadêmica. Recentemente, o então Ministro Renato Janine Ribeiro, chamou de ideologia nossos esforços para descolonizar o ensino de História, presente no documento Base Nacional Comum. Nós, professores somos ameacados pro um projeto de lei em dicussao no Congresso Nacional, denominado Escola Sem Partido, que pretende eliminar temas polêmicos como desigualdades de gênero, racismo, entre outros No Pará alguns cientistas sociais acreditam que pode-se construir um bom profissional da área sem Etnologia Indígena e Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, mesmo em minha universidade, a UDESC, o curso de Geografia, bacharelado e licenciatura, foram pensados sem fazer nenhuma refereência a Africa, América Latina e Ásia.
            A memória dos intelectuais brancos é curta. Esquecem-se que foram estes os temas que configuraram as ciências sociais, a História e a Geografia em nosso país. Pior, no exercício de sua Branquitude epistemicida, descumprem a legislação em vigor e ameaçam ser descredenciados pelo Ministério da Educação. Um grande sociólogo Guerreiros Ramos, negro e senador da República, afirmava com razão que o racismo é uma patologia do branco brasileiro.
Nós somos frutos de uma antiga estratégia de luta antirracista, a educação como instrumento de mobilidade individual e coletiva, de enfrentamento das desigualdades e emancipação social. Em verdade, pesquisadores como Willian Robson Soares Lucindo, Petrônio Domingues, entre outros, em suas pesquisas tem indicado no Movimento Negro, a centralidade da educação nas estratégias de mobilização e emancipação social dos descendentes de africanos.
UM NOVO CICLO DE LUTA
Vivemos um novo ciclo da luta por igualdade em nosso país e, consequentemente, o fim da agenda democrática que se configurou no fim da Ditadura Militar, e que, de algum modo serviu de referência para as lutas democráticas nos últimos trintas anos.
Ao contrário dos anos 1970, não esperamos o bolo da economia crescer para depois distribui-lo. Nós mudamos este paradigma. Nós, ao longo dos últimos anos, sobre a batuta da sociedade civil organizada, em diálogo com um novo quadro político-partidário, produzimos uma revolução democrática em nosso país.
Estávamos substituindo o antigo projeto neoliberal, baseado na redução do papel do Estado, na liberalização dos mercados, na precarização das condições de trabalho e desarticulação da sociedade civil; por uma nova proposta para o país consagrado na fórmula crescimento econômico, combinado com enfrentamento da pobreza e combate às desigualdades.
No nosso campo, elaboramos uma pauta multiculturalista que deixou nu os mecanismos que reproduzem a dominação branca em nosso país. Ações universalistas articuladas a definição de políticas de combate às desigualdades raciais, tiveram o mérito de colocar o racismo e seus efeitos na agenda política do país.
Do ponto de vista institucional, a legitimidade das políticas de ação afirmativas foi reconhecida pelo Executivo, Judiciário e Legislativo. O Brasil tornou-se signatário de diferentes convenções internacionais, entre eles a Declaração e Plano de Ação da III Conferência Internacional Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, África do Sul.
Nos sistemas de ensino, em especial, no Governo Federal, em tese, construímos um arcabouço jurídico e administrativo, jamais visto, focado no combate às desigualdades raciais na Educação. Leis Federais 10.639/03, 11.645/08, regulamentadas pelas Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena, estabeleceram as regras por meio das quais se pretende enfrentar o racismo e promover o respeito a diversidade cultural no cotidiano escolar. Oque falta, o aprimoramento dos mecanismos de fiscalização do cumprimento das normas. E nesse sentido, uma reorientação do papel do INEP é fundamental. Enquanto os colonos brancos continuarem ditando o ritmo das mudanças a Educação brasileira não avançará em direção a igualdade.
Em relação a formação inicial, hoje sabemos, só isto não basta. Mas do que políticas de ação afirmativa para o acesso, precisamos levar em consideração a permanência e o sucesso de nossos egressos. E isto significa pensar não só as Instituições Federais Ensino Superior (IFES), mas igualmente instituições públicas, privadas e comunitárias. E isto também significa uma mudança de paradigma.
O que está em questão a necessidade de aprofundar, as políticas de modo a definir metas e cronogramas. Nós aprovamos cotas no serviço público federal, mas vemos nossas instituições de ensino superior burlar de forma assustadora as condições para efetivação da presença negra na docência universitária.
Igualmente, precisamos enfrentar as dificuldades para ampliar as oportunidades de acesso aos estudos pós-graduados em nossas instituições. E isso não será possível sem um dialogo, nem sempre fraterno com a SESU/MEC, CAPES e CNPq, para serem criadas diretrizes que estimulem os programas de pós-graduação no país a, primeiramente, mas não só, reservarem vagas para estudantes negros e negras. Em workshop realizado no final de 2013, indicamos a CAPES, a possibilidade de oferecimento de bolsas adicionais para estudantes afro-brasileiros, assim como, a adoção do quesito cor nos seus instrumentos de coleta de informação.
Em falando em CAPES e CNPq, já indicamos a estas instituições a brutal sub-representação de negros e negras nos programas de mobilidade acadêmica como o Ciência Sem Fronteira. Colegas das HBCUS, nos informaram em 2013, que das cinco centenas de estudantes participantes do programa, acolhidos nas instituições negras participantes, apenas cinco eram fenotipicamente negros. Para nós, constituirá um avanço significativo nesta direção a implementação do programa Abdias Nascimento de Mobilidade Estudantil.
De outro lado, acertaram aqueles que optaram pelo caminho da judicialização da luta antirracista no espaço escolar. Passados doze anos da publicação da Lei Federal 10.639/03, muito ainda precisa ser feito. Aprendemos a duras penas que nos esfalfarmos nas estradas buscando oferecer o máximo de formação continuada aos docentes da educação básica, não significou uma ampliação do oferecimento de conteúdo previstos. Em pesquisa recente onde avaliamos cinco anos de atividades do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina (NEAB-UDESC) desde a sansão daquela norma legal pelo ex-presidente Luís Ignácio Lula da Silva, percebemos que escolas atendidas e não atendidas, embora demonstrassem conhecimento da existência da Lei, poucas significaram inclusão da temática no projetos políticopedagógicos, nos planos de ensinos, nas atividades desenvolvidas em sala de aula e em aquisição de material didático para as bibliotecas escolares. 
            Nossas experiências exitosas, quanto a perenidade e alcance das ações, ocorrem quando contribuímos para organização e consolidação de programas municipais de diversidade étnica na educação. Ao invés de formação ou oficinas para estudantes do ensino fundamental, que são eventos que logo se perdem no tempo, temos uma ação institucional, cujo, o foco central são os gestores públicos que organizam programas em três eixos: capacitação (gestores, multiplicadores e docentes), aquisição e produção de material didático, estudos e pesquisas (acesso, permanência e sucesso de estudantes afros) e fortalecimento institucional (criação de diretrizes municipais de educação para as relações étnico-raciais pelo conselho municipal de educação, aprovação do programa por decreto ou lei municipal, definição do cargo de gestor do programa, estabelecimento de rubricas na Lei Orçamentária Municipal Anual e no Programa de Ações Articuladas, inclusão nos exames de conhecimentos para admissão de professores.
Não se trata apenas de desconhecimento de materiais pedagógicos ou experiências exitosas, mas de um racismo institucional presente em todos os sistemas de ensino que tornam as escola instrumentos de colonização mental e de reprodução de hierarquias sociais que mantém a população não branca brasileira na condição de trabalhadores dependentes desde o século XVI.
Como vem nos alertando Hannah Arendt, o racismo e outras mazelas não são frutos da insanidade ou monstruosidades de um ou outro sujeito, mas é inerente a configuração da própria modernidade ocidental, ao exilar metade da humanidade das suas condições de existência, jogar a outra dentro de suas próprias cabeças e banir a experiência como base para o conhecimento e a verdade.
Duante os últimos trinta anos acreditamos no caminho propostos pelos canais democráticos, organizamos a sociedade cívil, campanhas de esclarecimento, luta institucional em diferentes esferas, participamos dos mais diferentes partidos políticos, conseguimos assim enfrentar o mito da democracia racial brasileira.

Entretanto, para nosso desespero, nunca nos encarceraram tanto, nunca nos mataram tanto. Certamente, dados das agências de saúde devem indicar o brutal impacto do sofrimento psíquico associado ao racismo na degradação de nossa saúde mental. Por último, avalanche conservadora e fascista, capitaneada pelo fundamentalismo cristão ameaça destruir tudo o que construímos de liberdades nas últimas décadas.
Em minha opinião, nós chegamos ao limite daquilo que os descendentes de colonos europeus, autodenominados brancos, estão dispostos a negociar. Sejam eles de esquerda ou de direita, sejam conservadores ou progressistas, eles controlam os mecanismos de legitimação democrática e grande parte de nós, de nossas organizações do movimento social, foram reduzidos a ONGs que vivem de migalhas do Estado ou da filantropia.

Hoje, reconhecemos que muitas foram as conquistas a ser comemoradas, em especial, nas últimas décadas termos colocado o combate ao racismo na agenda política de nosso país. De um modo geral, nós somos a expressão mais legitima do povo brasileiro o racismo um obstáculo a plena cidadania no Brasil.
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Nós, companheiros e companheiras, usando uma imagem judaica, subimos a montanha e vimos a terra prometida. Nossa tarefa: parir a geração que a frente do nosso povo, tornará esse país uma terra de homens e mulheres livres.


Primavera de 2016.

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