terça-feira, 6 de maio de 2014
No Escreva Lola Escreva
Não sei se tenho
alguma coisa pra contribuir sobre o terrível linchamento de Fabiane
Maria de Jesus. Mas isso mexeu comigo. Mexeu com muita gente.
No sábado, dia 3 de
maio, Fabiane, que vivia no bairro Morrinhos, em Guarujá, litoral de
SP, estava voltando de bicicleta da igreja, quando foi cercada por uma
multidão e barbaramente atacada. Pelo jeito, o pessoal que não estava
batendo estava filmando a cena, pois há (ou havia) vários vídeos desse
linchamento (porque hoje não basta cometer a violência, é preciso também
filmá-la e publicá-la nas redes sociais).
Quando
a polícia chegou, pensou que Fabiane estava morta. Ela foi levada ao
hospital, ficou dois dias em coma, e morreu ontem. Era dona de casa,
casada com um porteiro, tinha duas filhas.
Foi uma das vítimas
da barbárie. No Guarujá, havia boatos que uma mulher estaria
sequestrando crianças para rituais de magia negra. Ou seja, uma bruxa
estava à solta.
Na sexta, dia 2, uma montagem com um retrato falado da "vagabunda" foi publicada na página do Facebook Guarujá Alerta. Não
se sabe quem fez a montagem, mas o retrato falado é de 2012, e a foto
da mulher de cabelo loiro é de uma usuária qualquer no FB, como bem explicado aqui.
Também não se sabe exatamente a responsabilidade da página Guarujá Alerta.
Por mais que tenha permitido que um dos seus seguidores postasse a
montagem, a página vinha dizendo que, apesar dos insistentes rumores,
não havia qualquer registro na polícia de uma sequestradora de crianças
na região. A princípio,
quando a tragédia eclodiu, o administrador da página (ou os
administradores, não dá pra saber, porque são anônimos) veio com
bravatas, alegando perseguição política. Depois, baixou o tom, e agora
insiste que não falará nada para não prejudicar as investigações.
Ao ler sobre esse linchamento, muitas memórias me vieram à mente. Lembrei de uma das cenas mais chocantes que vi na TV, em toda minha vida: um capítulo da novela Sinal de Alerta,
do grande Dias Gomes. Era uma novela das dez da noite, e eu só tinha
onze anos. Se não me engano, o primeiro capítulo já mostrava uma cena de
linchamento. Eu nunca tinha visto aquilo. Nem sabia que isso existia.
Isso de pessoas fora de si espancarem uma pessoa até a morte, com as
próprias mãos. Aquilo foi marcante pra mim. Talvez tenha sido meu
primeiro momento de "pare o mundo que eu quero descer".
Morei quinze anos
em Joinville, a dois quarteirões de um posto da polícia, que não fazia
nada. Não ajudava a diminuir a criminalidade na vizinhança, não apartava
brigas de vizinhos, sequer evitava que o bosque ao lado do posto fosse
desmatado. E todo mundo sabia que ter ou não ter o posto policial ali
dava na mesma.
Porém, teve um dia
em que fui levar meu cachorrinho pra passear, e percebi que vários
moradores estavam apontando pro posto policial e comentando. Parece que
os policiais haviam capturado um bandido e ele estava dentro do posto,
"recebendo um trato", de acordo com meus vizinhos. Eles falavam com
grande admiração da polícia torturar um suspeito. Era exatamente isso
que eles queriam da PM.
A maior parte dos
meus vizinhos em Joinville era espectadora assídua de noticiários
policiais. Não só os de rede nacional, mas os locais, que devem ser mais
sangrentos e justiceiros ainda. Os crimes que viam noticiados pautavam
suas conversas. Ouso dizer que uma das grandes frustrações desses meus
vizinhos era não ter a chance de fazer "justiça" com as próprias mãos.
Eles tinham muitos planos do que gostariam de fazer.
Foi lá em Joinville
também que uma vizinha mais distante, meio desconhecida, uma vez pediu
emprestada minha linda gata preta, Blanche. Ela precisava da Blanche só
um pouco, só pra tirar um tiquinho de sangue pra fazer algum tipo de
feitiço. Eu não me lembro o que respondi. Creio que fiquei paralisada,
sem reação, estupefata demais com o medievalismo alheio.
Além desses
pensamentos atravessados, ao ler sobre o assassinato de Fabiane também
pensei que eu vivo dizendo como nós feministas precisamos tomar cuidado
com o punitivismo excessivo, de como feministas têm de estar ao lado dos direitos humanos, sempre.
Às vezes, nos casos mais famosos e escabrosos de estupro ou
feminicídio, aparecem feministas defendendo pena de morte, tortura, até
castração, ou simplesmente um desejo de fazer justiça com as próprias mãos, de condenar sem provas, sem julgamento.
Eu me horrorizo com
essas palavras, e penso: se houvesse um estuprador próximo, elas
participariam de seu linchamento? Não estou falando de legítima defesa,
nem de manifestações, nem de escrachos públicos. Estou falando desse
sentimento justiceiro, tão perigoso, tão bárbaro.
Mas não posso negar
que a primeira pessoa que me veio à mente ao ler sobre Fabiane foi uma
mulher que não tem nada a ver com feminismo: Rachel Sheherazade, âncora
do SBT. No início de fevereiro, ao comentar o caso de um adolescente
(negro, óbvio; a maior parte dos linchados é negra) que foi preso a um
poste no Rio por justiceiros, Rachel disse:
"É, o marginalzinho
amarrado ao poste era tão inocente que, em vez de prestar queixa contra
os seus agressores, ele preferiu fugir, antes que ele mesmo acabasse
preso. É que a ficha do sujeito está mais suja do que pau de galinheiro.
No país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada cem mil
habitantes, que arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídio e sofre
de violência endêmica, a atitude dos vingadores é até compreensível.
"O Estado é omisso,
a polícia, desmoralizada, a justiça é falha, quê que resta ao cidadão
de bem , que ainda por cima, foi desarmado? Se defender, é claro! O
contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva
de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E,
aos defensores dos direitos humanos, que se apiedaram do marginalzinho
preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um
bandido".
Rachel (e todo o
senso comum; meus vizinhos em Joinville, tenho certeza, e, sei lá, 70%
da internet?) defendeu a barbárie. Mais tarde, diante da polêmica, ela afirmou ter dito que a ação dos "vingadores" (não justiceiros, eles mesmos com extensa ficha criminal)
era "compreensível", não "aceitável". Mas acho que seu comentário por
inteiro não deixa qualquer margem de dúvida sobre sua opinião, que é,
infelizmente, a da maioria: que só existe uma coisa pior que bandido --
que são os defensores de direitos humanos. Afinal, direitos humanos para
humanos direitos, né?
A multidão que
linchou Fabiane era composta por "cidadãos de bem", por "humanos
direitos"? Provavelmente sim, seja lá o que quer dizer "cidadão de bem",
um termo moralista pra chuchu. Então por que estamos horrorizadxs
agora? Por que Rachel não aparece para dizer que a atitude dos
linchadores de Fabiane foi "compreensível"? Por que ninguém vem
defendê-los? Ah, porque Fabiane era inocente! Porque ela não era uma
bruxa. Tá, e se fosse? Isso tornaria a atitude dos linchadores mais
aceitável, opa, compreensível?
Em fevereiro, pouco depois da polêmica de Rachel, a Folha de SP entrevistou
um sociólogo, que disse: "A sociedade civil está ficando
progressivamente descontrolada". Não é que o número de linchamentos
estourou, mas houve, segundo ele, uma "ligeira intensificação de
ocorrências". Se antes havia em média quatro linchamentos por semana no
Brasil, agora há cerca de um por dia. E pra maior parte há vídeos,
fotos, defensores desses "cidadãos de bem".
Em meados de abril,
houve um caso inusitado em Brasília. Um ladrão passou num ponto de
ônibus e roubou vários pertences das pessoas que estavam ali. Pouco
adiante, foi rendido pelo segurança de um supermercado, e as pessoas em
volta correram para linchar o assaltante.
Uma das pessoas que
tinham sido roubadas no ponto de ônibus, uma jovem chamada Jhamille que
estava indo para uma entrevista de emprego, também correu pra lá. Mas
não pra linchar o sujeito, e sim para protegê-lo. Ela não permitiu que o homem, já nocauteado no chão e ferido, continuasse a ser agredido.
Além
do mais, ela foi a única das pessoas assaltadas por aquele ladrão que
foi à delegacia prestar queixa contra ele. "Fiz o meu dever de cidadã ao
protegê-lo e denunciá-lo".
Jhamille é um
exemplo. Mas, por causa de seu gesto, ela recebeu inúmeras ameaças e
xingamentos, de gente que acha "compreensível" fazer justiça com as
próprias mãos.
Se tivessem havido mais Jhamilles e menos Rachéis no linchamento de sábado, talvez Fabiane estivesse viva.
Comentários