Baumann e Obama - Tradução de Marcelo Medeiros

Para quem curte, uma pérola: um texto de Zygmunt Bauman, inédito em português, sobre os obstáculos e as aparentes opções de Obama (extraido de This Is Not a Diary. Cambridge: Polity Press, 2012):


28 de janeiro de 2011

Sobre mantê-lo do lado de dentro ficando do lado de fora

Poucos meses antes das últimas eleições presidenciais americanas, numa conversa com Giuliano Battiston, eu disse o seguinte em resposta a uma pergunta dele: “Será que a eleição [de Obama] pode ser interpretada como um sinal de que o sistema político americano rompeu definitivamente o vínculo entre demos e ethnos e que os Estados Unidos estão se transformando numa sociedade pós-étnica mais consciente?”:
Obama precisa ter cuidado em não concorrer ao poder em nome das massas “tiranizadas e oprimidas”, que são por esse motivo proclamadas inferiores – e cujas incapacidade, indignidade e infâmia, impostas e estereotipadas, resvalam sobre ele em função de sua classificação etnicamente/racialmente herdada/atribuída. E ele não está concorrendo ao poder na onda de uma rebelião promovida pelos “tiranizados e oprimidos” ou por um “movimento social/político”, como seu porta-voz, plenipotenciário e vingador. O que se pretende provar com seu progresso e ascensão – como provavelmente ocorrerá – é que um estigma coletivo pode ser tirado das costas de indivíduos selecionados; em outras palavras, que alguns indivíduos das categorias oprimidas e discriminadas possuem qualidades que “ultrapassam” sua participação numa inferioridade coletiva, categorial; e que essas qualidades podem ser equivalentes ou mesmo superiores àquelas apresentadas por concorrentes que não sofram o peso do estigma categorial. Esse fenômeno não invalida necessariamente o pressuposto da inferioridade categorial. Deveria antes ser percebido (e o é por muitos) como reafirmação perversa do pressuposto: eis aqui um indivíduo que, quase ao estilo do Barão de Münchhausen, conseguiu se erguer por iniciativa própria: mediante seus talentos e sua força individuais, não por seu pertencimento a determinado grupo, mas apesar dele – e provando, no mesmo sentido, nem tanto o valor e a virtude amplamente subestimados de “seu povo”, mas a tolerância e a generosidade de seus superiores sociais, cuja superioridade se manifesta em estarem prontos a permitir que indivíduos ambiciosos e talentosos da categoria inferior se juntem a eles e tentem chegar ao topo, assim como a suprimir muitas das objeções generalizadas à aceitação social e política dos que o conseguem. Isso não significa, porém, que o progresso dos indivíduos que agarraram uma oportunidade assim vá elevar a categoria como um todo, a “categoria em si”, de sua posição social inferior e abrir perspectivas de vida mais amplas para todos os seus membros. O longo governo semiditatorial de Margaret Thatcher não trouxe a igualdade social para as mulheres, o que provou foi que algumas mulheres podem derrotar os homens em seu próprio jogo machista. Muitos dos judeus que conseguiram emergir dos guetos no século XIX e passar por alemães (ou pelo menos assim tentavam acreditar) fizeram muito pouco por seus irmãos e irmãs, atribuídos ou imputados, deixados para trás, no sentido de tirá-los da pobreza e protegê-los da discriminação jurídica e social. E tal como a promoção pessoal de Margaret Thatcher não tornou menos “masculino” o establishment britânico, a carreira dos fugitivos do gueto judaico não tornou a Alemanha menos nacionalista. Nem tampouco encurtou a distância entre discriminadores e discriminados. Na verdade, ocorreu o contrário...
Muitos dos ideólogos e praticantes mais barulhentos e dedicados das variedades mais radicais dos nacionalismos promissores do século XX eram recém-chegados de “minorias étnicas” ou estrangeiros “naturalizados” (incluindo Stalin e Hitler). Um judeu, Benjamin Disraeli, solidificou e fortaleceu o Império Britânico. O grito de guerra dos “assimilados” era “tudo que você pode fazer, eu posso fazer melhor” – a promessa e determinação de ser mais católico que o Papa, ou mais alemão que os alemães, mais polonês que os poloneses ou mais russo que os russos em termos de enriquecer suas respectivas culturas e promover seus respectivos “interesses nacionais” (feitos que frequentemente eram usados contra eles, tomados como provas de sua duplicidade e de suas intenções insidiosas). Entre todas as outras coisas que eles tendiam a “fazer melhor” do que os nativos estava também (para muitos dos assimilados) sua indiferença à sorte e aos interesses da sua “comunidade de origem” que caracterizava os pensamentos e ações dos “nativos”...

Cerca de um ano depois de Obama se mudar para a Casa Branca, quando minhas primeiras premonições se haviam transformado em observações, eu acrescentei (em uma das cartas publicadas no La Repubblica) os seguintes comentários de Naomi Klein:

Os negros e latinos que não fazem parte da elite estão perdendo terreno de modo considerável, com suas casas e empregos escapando de suas mãos a uma taxa muito mais alta do que os dos brancos. Até agora, Obama não tem se disposto a adotar políticas de cunho específico para fechar essa brecha que nunca para de se ampliar. O resultado pode muito bem deixar as minorias no pior dos mundos: a dor de uma reação racista em ampla escala sem os benefícios de políticas capazes de amenizar suas dificuldades quotidianas.

Outro ano se passou e muito mais água rolou pelas pontes do Rio Potomac, mas basicamente foram as mesmas as mensagens transmitidas do Salão Oval para os guetos negros dos Estados Unidos. Mensagens com palavras, mas também silenciosas... Como observa Charles M. Blow no New York Times de hoje: “Foi a segunda vez desde o discurso do Estado da União proferido por Harry S. Truman em 1948 que um discurso como esse, proferido por um presidente democrata, não inclui uma única menção à pobreza ou à condição dos pobres.” Poucas dúvidas restam: a esperança dos destituídos, oprimidos e humilhados voltou suas costas àqueles que o elegeram (ou seja, 95 por cento dos eleitores negros e 67 por cento dos hispânicos; 73 por cento das pessoas que ganham menos de 15 mil dólares por ano, 60 por cento dos que ganham entre cinco mil e 30 mil, e 55 por cento daqueles com rendimentos entre 30 mil e 50 mil dólares). Ele chutou para longe a escada com que chegou ao gabinete em que geralmente se redigem os discursos do Estado da União. Brian Miller, diretor-executivo do grupo de pesquisa United for a Fair Economy [Unidos por uma Economia Justa], comenta a mensagem que Obama deixou fora de seu discurso, mesmo que sua forma de governar os Estados Unidos a transmitisse com toda a clareza àqueles que o ajudaram a aceder ao poder: “Como 42 por cento dos negros e 37 por cento dos latinos carecem do dinheiro necessário para pagar as despesas mínimas com moradia por mais que três meses se ficarem desempregados, cortar os programas de assistência pública terá impactos devastadores sobre os trabalhadores negros e latinos.”
“Minha fé nele [o Presidente] como defensor ardente dos pobres e desprivilegiados entrou novamente em queda livre... [O Presidente] parece estar se afastando, frequentemente a toda velocidade, das pessoas que antes o apoiavam” – assim Charles Blow resume seus próprios comentários. E, entristecido, faz as perguntas que agora deve considerar, tal como eu, puramente retóricas:

Para os pobres, este é o dilema de Obama. Ele foi obviamente a melhor escolha em 2008. E, a julgar pelo atual elenco de contendores republicanos, poderá ser a melhor escolha em 2012. Mas será que isso lhe dá licença para deixar de lado a responsabilidade moral perante seus devotados eleitores? Será que eles podem e devem tomar seu desprezo como uma consequência necessária da guerra política ao dedicar seus esforços a se religar ao centro e se reconectar àqueles cuja opinião sobre ele vacilam entre o desprezo num dia ruim e a tolerância num dia bom? Será que mantê-lo na Casa Branca implica mantê-los nas sombras?

Comentários

Anônimo disse…
Caro Paulino,

Só uma correção: o tradutor é Carlos Alberto, e não Marcelo, Medeiros. Eu mesmo.

CAM