Kautilya, o Contemplador. O colapso da diplomacia americana: da arte estratégica da política ao espetáculo político. Comunidad Saker Latinoamérica, 02 de novembro de 2025
O colapso da diplomacia americana: da arte estratégica da política ao espetáculo político
Kautilya, o Contemplador – 29 de outubro de 2025
Nota do Saker Latinoamérica: Quantum Bird aqui. Um sumário amplo sobre a futilidade de negociar qualquer coisa com os EUA. Algo que seguramente ainda precisa ser assimilado pelo "diplomacia" brasileira. Mas há esperança... pelo menos Lula foi capaz de articular que a presença de Rúbio é um entrave a qualquer negociação. Entretanto, convém não esquecer que dizer a coisa certa não basta, é necessário tambem fazer algo a respeito... e nesse ponto o débito de Lula só cresce. Boa leitura.
As ações dos EUA na Ucrânia e em outros lugares revelam a incoerência da diplomacia americana e o enfraquecimento de sua credibilidade por parte de aliados, Estados neutros e adversários.
Em 28 de outubro de 2025, durante uma coletiva de imprensa em Minsk, na Bielorrússia, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, revelou que o enviado pessoal do presidente Trump, Steve Witkoff, havia viajado a Moscou com uma proposta dos EUA uma semana antes do encontro dos dois chefes de Estado no Alasca. Sem entrar em detalhes, Lavrov afirmou que o presidente Putin considerou a proposta de Witkoff aceitável como base para negociações para encerrar o conflito na Ucrânia. No Alasca, depois que o lado russo confirmou com Witkoff que sua compreensão da proposta estava correta, o presidente Trump hesitou e disse que precisava consultar Washington e seus aliados europeus antes de responder. Assim, Lavrov brincou dizendo que Moscou estava “esperando uma resposta americana a uma proposta americana”.
Se acreditarmos na declaração de Lavrov, ela captura o colapso tragicômico da coerência no cerne da diplomacia americana. Além disso, essa falta de clareza é ainda mais surpreendente considerando que Trump mudou sua posição, passando de declarar no Alasca que um acordo de paz mais amplo, e não um cessar-fogo, era necessário para acabar com o conflito, para agora exigir um cessar-fogo completo. Ao mesmo tempo, ele aprovou sanções econômicas contra duas grandes empresas petrolíferas russas, a Rosneft e a Lukoil, um ato hostil importante em relação a Moscou.
Esses acontecimentos são mais do que um constrangimento. Eles sinalizam desintegração institucional. Uma superpotência global outrora hábil em definir agendas e executar acordos agora cambaleia de crise em crise por meio de intermediários sem mandato. A política externa de Trump se transformou em fanfarronice, sanções e intimidação, desprovida de clareza estratégica, continuidade ou respeito pela diplomacia como uma arte disciplinada.
Em comparação com o histórico, o declínio é gritante. A distensão Nixon-Kissinger, as negociações sobre armas de Reagan com Gorbachev e a formação da coalizão de Bush antes da Guerra do Golfo de 1991 exemplificaram autoridade, consistência e propósito. A abordagem de Trump, caracterizada por desordem, contradições e políticas conduzidas por meio de confidentes pessoais, marca o colapso de uma tradição outrora coerente de arte de governar.
A missão Witkoff: um estudo sobre disfunção
A escolha de Steve Witkoff, um incorporador imobiliário sem experiência diplomática, como emissário para uma proposta delicada ressalta esse declínio. Os presidentes anteriores enviaram figuras de prestígio e experiência. Franklin Roosevelt confiou a W. Averell Harriman a missão de ser seu emissário pessoal junto a Joseph Stalin e ajudar a gerenciar a coordenação dos Aliados durante a guerra. Sob Dwight Eisenhower, John Foster Dulles orquestrou a arquitetura da aliança e a diplomacia durante as crises de Suez e Formosa. Durante o governo Kennedy, Adlai Stevenson defendeu a posição dos EUA na Organização das Nações Unidas sobre a crise dos mísseis cubanos. Sob Nixon, Henry Kissinger conduziu uma diplomacia itinerante que levou à abertura com a China. Durante os anos Reagan, George Shultz e Paul Nitze foram pesos pesados do controle de armas que conseguiram o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF) por meio de negociações complexas com a União Soviética.
No caso de Trump, a lealdade e o instinto transacional substituíram a competência. Segundo Lavrov, a oferta de Witkoff, supostamente relatada por analistas e pela mídia como uma retirada ucraniana de Donetsk em troca do congelamento dos combates ao longo das linhas atuais em Zaporizhzhia e Kherson, era concreta o suficiente para que Putin a aceitasse como base para as negociações.
Embora não tenha havido confirmação oficial do lado russo sobre o que Putin aceitou antes da reunião no Alasca, o ponto é que a pouca credibilidade que a visita de Witkoff havia construído simplesmente evaporou quando Trump hesitou em confirmar a proposta. A mensagem para Moscou e para o mundo foi clara: os Estados Unidos não falam mais com uma só voz. Um emissário entrega propostas que o presidente não assumirá. Um Departamento de Estado marginalizado não desempenha nenhum papel visível. Confusão e paralisia se seguem — a antítese da diplomacia.
Da coerência estratégica ao caos tático
A diplomacia alinha meios e fins. Ela sincroniza palavras com estratégia. Mesmo quando os objetivos dos EUA eram controversos, os governos anteriores mantinham a coerência interna, como a doutrina de contenção de Truman, o processo disciplinado do NSC de Eisenhower e a realpolitik de Nixon.
Sob Trump, no entanto, a coerência deu lugar à improvisação, que envolve oscilações entre o isolacionismo e a bravata militarizada, declarações de paz acompanhadas de ameaças de aniquilação e enviados pessoais e doadores substituindo instituições. Em qualquer aparato funcional, uma proposta enviada por canais oficiais carrega o selo do presidente e gera uma resposta estruturada. Sob Trump, as propostas são apresentadas, retiradas e negadas, muitas vezes no mesmo ciclo de respiração.
O esvaziamento institucional do Departamento de Estado
O colapso não pode ser compreendido sem a decadência do Departamento de Estado. Diplomatas de carreira com experiência e memória foram marginalizados ou expulsos, as embaixadas ficaram vazias, a formulação de políticas migrou para o Conselho de Segurança Nacional ou para o círculo pessoal do presidente. O corpo profissional que antes coordenava posições, informava aliados e gerenciava crises foi reduzido à irrelevância burocrática.
As escolhas de liderança agravaram essa decadência. Sob Hillary Clinton, um reflexo intervencionista, mais visível na Líbia, sinalizou que Washington ainda preferia a ótica da mudança de regime aos resultados finais negociados, corroendo a confiança nas promessas dos EUA e no planejamento pós-guerra. Sob Antony Blinken, o centro de gravidade mudou ainda mais da negociação para a punição, implicando sanções maximalistas, retórica moralizante sobre “valores” sem saídas exequíveis e mensagens performáticas da coalizão que alienaram grande parte do Sul Global, sem produzir arquiteturas de acordo confiáveis. Hoje, Marco Rubio simboliza o consenso do Capitólio de priorizar a escalada de ferramentas coercitivas em detrimento da diplomacia, levando assim o Departamento de Estado a uma postura militarizada e estreitando o espaço político para as concessões.
O efeito líquido é uma mistura surpreendente de incompetência, arrogância e belicismo que causou mais danos à credibilidade e ao prestígio dos Estados Unidos do que qualquer outro erro isolado. Hoje, os aliados duvidam do julgamento dos EUA, os Estados não alinhados duvidam de sua neutralidade e os adversários desconsideram suas concessões.
A confiança em figuras como Steve Witkoff ou Jared Kushner também reflete não apenas preferências pessoais, mas um colapso estrutural. O departamento que antes proporcionava continuidade estratégica foi efetivamente decapitado. Durante a Guerra Fria, a diplomacia americana gerava estratégia. Em contrapartida, hoje a política externa é performática e elaborada para manchetes e comícios, em vez de acordos negociados.
O triunfo do transacional, a erosão do estratégico
Trump reduziu a política internacional a acordos pessoais. A política externa tornou-se uma extensão da marca e do espetáculo doméstico. Os compromissos se corroem sob cálculos de curto prazo. A saga Witkoff, caracterizada por um enviado empresário, uma cobertura presidencial e um ministro das Relações Exteriores expondo a contradição, simboliza um sistema em que a mão esquerda não sabe mais o que a direita está fazendo.
Esse ethos alimenta uma dependência excessiva das sanções como substituto da estratégia. Incapaz de negociar, Washington recorre à coerção. No entanto, sanções sem diplomacia punem sem resolver e alienam sem convencer. Seu uso excessivo sinaliza o esgotamento da imaginação estratégica, especialmente quando o alvo se adapta e trata as sanções como uma condição de fundo.
Consequências para a ordem global e a Ucrânia
A incoerência dos EUA abre espaço para outros. Rússia, China, Índia, Turquia e Irã expandem sua agilidade diplomática enquanto Washington improvisa. A afirmação de Lavrov de que a Rússia está esperando que os EUA respondam aos EUA destaca uma nova assimetria em que Moscou parece metódica, enquanto Washington parece performática. Os aliados estão se protegendo, como demonstrado pela Europa buscando “autonomia estratégica”, os BRICS desafiando os canais do dólar e os fóruns asiáticos se multiplicando em resposta à percepção de falta de confiabilidade dos EUA.
Para a Ucrânia, os custos são diretos. Acordos duradouros exigem sequenciamento, verificação e reciprocidade. Isso só pode ser alcançado por meio de uma arquitetura diplomática competente. O episódio Witkoff sugere que havia uma janela estreita a ser explorada. Ela se fechou não porque as posições eram irreconciliáveis, mas porque o suposto mediador não conseguiu sustentar sua própria jogada inicial. Se as partes não podem confiar que uma proposta americana continuará sendo uma proposta americana, elas negociarão sem os Estados Unidos ou permitirão que os fatos no terreno se solidifiquem sem um quadro político.
A Cúpula de Budapeste: Preparação abandonada
O recente cancelamento da cúpula de Budapeste pelos EUA ressalta a relutância de Washington, e sua aparente incapacidade, de fazer o trabalho árduo de base que cúpulas sérias exigem. Durante a Guerra Fria, as reuniões entre os líderes americanos e soviéticos eram precedidas por negociações metódicas nos bastidores, diplomacia itinerante e rascunhos cuidadosamente sequenciados, para que os líderes chegassem para ratificar, não improvisar. Em contraste, a abordagem ad hoc de hoje reduz as cúpulas a um teatro.
Como observou o presidente Putin em sua coletiva de imprensa após o cancelamento da cúpula, o trabalho preparatório para qualquer reunião de chefes de Estado deve ser minucioso para que resultados substanciais possam ser alcançados; caso contrário, tais encontros são uma perda de tempo. A reunião abortada em Budapeste torna-se, assim, a prova a do colapso mais amplo do processo, em que, sem uma preparação disciplinada, mesmo encontros de alto nível não podem produzir acordos duradouros. Além disso, esse episódio demonstra que Washington não está mais equipada para negociar no nível que antes dominava.
O cancelamento repentino do presidente Trump também enfraqueceu as vozes da paz, principalmente a do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, que investiu capital político e credibilidade pública na crença de que Trump poderia acabar com a guerra. Ao desistir no último momento, Washington enfraqueceu um interlocutor que manteve os canais abertos, sinalizou disposição para mediar e defendeu um resultado negociado dentro da Europa. O revés não apenas constrange Budapeste, mas também estreita a coalizão para a diplomacia, esfria outros possíveis facilitadores e fortalece os linha-dura de todos os lados que afirmam que o envolvimento de alto nível é inútil. Em resumo, cancelar Budapeste não apenas desperdiçou uma oportunidade, mas também corroeu ativamente a limitada arquitetura de pacificação que ainda existe.
Da liderança à responsabilidade
A revelação de Lavrov cristaliza uma crise em que o Estado mais poderoso do mundo já não consegue coordenar a sua própria diplomacia. O que antes se baseava na preparação, nas instituições e na previsão tornou-se teatro. A tragédia é maior do que uma administração. É a erosão de uma tradição que se estendeu desde a diplomacia de Roosevelt durante a guerra até Bretton Woods e à ordem do pós-guerra. A nação que outrora negociou a forma do mundo não consegue responder a uma proposta em seu próprio nome.
A história julga os Estados pela coerência de sua arte de governar. A menos que Washington restaure um processo que envolva objetivos claros, ferramentas alinhadas e uma única voz autoritária, continuará a perder influência para os acontecimentos e para outros. A primeira negociação, antes de qualquer mesa com Moscou ou Kiev, deve ser dentro da própria Washington — entre espetáculo e arte de governar, improvisação e instituição. Só então as propostas com o selo americano serão levadas a sério pelo mundo.
Fonte original: https://substack.com/home/post/p-177389990
Fonte em português: https://sakerlatam.blog/o-colapso-da-diplomacia-americana-da-arte-estrategica-da-politica-ao-espetaculo-politico/

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