Hugo Dionísio. Eleições em Portugal: O espelho de uma União Europeia em ruínas. Strategic Culture Foundation, 22 de maio de 2025.

 

Em “Médiarquia”, Yves Citton desmonta uma máquina de influência política que está a encerrar a discussão política naquela que podemos considerar o campo tradicional da direita. Segundo Citton, em termos muito simples, a mídia dominante cria os ambientes propícios à produção de um determinado estado mental, de ressentimento, desilusão ou impotência, e depois, através de um exército de comentadores e outras figuras com exposição pública, produz e transmite o discurso que vai responder, precisamente, ao ambiente de medo provocado, cujos constituintes estão dissociados dos mais graves problemas que os trabalhadores têm.

Neste sentido, considere Citton que o regime em que vivemos – a democracia liberal – já não é uma democracia, mas uma mediarquia ou, até, uma “ publicocracia ”, uma vez que a mídia produz as figuras públicas – através da sua entrada em programas de entretenimento – em que mais tarde o público vai associar ao discurso que lhe foi plantado na cabeça como coincidente com o mesmo. Daí que estas pessoas se mobilizam mais pelo ódio aos migrantes asiáticos, à corrupção – endémica do capitalismo -, do que em relação aos problemas de habitação, trabalho, educação, saúde ou até a possibilidade de guerra. O que eles procuram é a coincidência do discurso, a confirmação do problema e não a solução em si.

Isto, bem, nada tem de novo, uma vez que o fenômeno da exposição pública associado ao discurso amplificado pelas redes sociais, há muito que foi identificado como se tratando de uma estratégia para influenciar o voto, do qual as sondagens, a escolha criteriosa das notícias, os comentários sobre as mesmas e muitos outros elementos comunicacionais, são as peças de uma máquina de ganhar eleições, à disposição da classe detentora do poder econômico. Não é de admirar que este fenómeno, no tempo das televisões públicas apenas nas mãos dos governos e dos seus apoiantes, tenha transitado para centros de interesses privados, extremamente poderosos e, muitas vezes, em aparente dissociação com o poder instituído.

Citton também reflete muito sobre a necessidade de resposta a esta máquina infernal. Como é que as forças democráticas enfrentarão e encontrarão os instrumentos para responder a esta máquina de conquistar votos e influenciar o eleitorado, ao ponto de estas tomarem decisões aparentemente irracionais, emocionais, pré-reflexivas, contra os seus próprios interesses? Citoon aponta para a necessidade de maior escrutínio da comunicação social e do seu funcionamento, mas esse caminho é pouco plausível na medida em que ela se trata de um instrumento de poder, usado para tal e como tal. A questão, a meu ver, que não sou especialista na matéria, passa mais por perceber, porque razão, este instrumento funciona como funciona, para depois o podermos atacar na base.

A resposta não é fácil e merece uma análise profunda das condicionantes históricas do nosso tempo, utilizando o melhor instrumento e referencial que temos à nossa disposição: a experiência histórica. Para chegarmos à resposta necessária, teremos de perceber por que razão estas convulsões sociais se produzem e, mais ainda, por que razão são elas, nos dias que correm, tão características da sociedade ocidental, dos EUA e da União Europeia, ou das sociedades que se regem pelos princípios “liberais”.

A produção de um ambiente propício à tomada de decisões irracionais e emocionais, do tipo comumente designado como “reaccionário” – na fase reativa superficial – não se pode dissociar do ambiente económico em que as forças capitalistas dominantes se deparam com os desafios, metas e objectivos que enfrentam. Afinal, a instabilidade nas nossas vidas, a sensação de perenidade, a efemeridade das condições, são resultados diretos do tipo de economia em que vivemos, das suas necessidades e das políticas que promovem junto com o estado que controla.

São estas forças que promovem o discurso dominante, que valorizam determinada ameaça em detrimento de outra, que massificam a informação, hoje através das redes sociais e da imprensa mainstream, como ontem tal foi feito através da igreja e das instituições de poder, de forma direta. Voltando à experiência histórica, o que ela nos diz é que não é a primeira vez que uma classe trabalhadora se sente perdida, acossada e isolada diante das ameaças cuja existência percepciona.

Na designada primeira revolução industrial, aquando da introdução do tear mecânico, na primeira metade do século XIX, os Luditas (ataque ao tear mecânico) ou os “Swing Rioters” (destruição das debulhadoras agrícolas) destruíram as máquinas, vendendo nelas uma ameaça ao emprego da sua força de trabalho. Para agravar o sentimento de perda, como mais condições de salubridade, segurança, comprometimento e outras condições de vida também se desenvolvem para este tipo de reação. Contudo, não podemos, mais uma vez, dissociar esta atitude da pequena burguesia. Os pequenos proprietários que viram os preços dos cereais baixar e não tinham condições económicas para mecanizar a sua exploração agrícola; das pequenas artes que não conseguem investir nas novas tecnologias e dependem do manual de tecelagem; do papel da igreja que via a sociedade se transformava de forma muito rápida e propagava um discurso reacionário sobre o assunto.

A pequena burguesia, os setores da burguesia mais tradicionais que se viram ultrapassados ​​pela burguesia tecnológica da altura, forças conservadoras e reacionárias avessas à mudança operada, manuseando uma classe trabalhadora que se sentiu acossada, sentindo em perigo aquela que constitui sua única forma de sustento, face à agressividade do capitalismo industrial emergente, mais dinâmico e empreendedor e com maior poder sobre a decisão política, financiado por um capital financeiro também emergente, criado o caldo social que levou à emocional violenta, à raiva e ao ódio à inovação tecnológica.

Julgo que este momento talvez seja o mais parecido e com os materiais constituintes mais análogos e similares ao que vivemos hoje. Um processo de transição tecnológica baseado na digitalização, inteligência artificial e automação avançada que é vendido como ameaçando o emprego, podendo provocar desemprego em massa; um capitalismo financiado e globalizado que ameaça a qualidade do emprego, a evolução, a estabilidade e a previsibilidade da vida, acentuando a sensação de descontrolo; um processo de atomização como relações de trabalho que individualizam, resultado da terciarização da economia e da sua terceirização por recurso ao “Outsorcing”, produzindo postos de trabalho cada vez mais isolados, em que o fenómeno organizacional é mais difuso e desconexo; a emergência de empresas ligadas ao “ cloud capital ” que operam além fronteiras, sem conexão física, acentuando a sensação de alienação, não apenas em relação ao produto do trabalho, mas também em relação ao próprio trabalho em si. Tudo é uma velocidade estonteante e apresentado como tendo um potencial disruptivo incrível.

Em virtude do avanço deste capitalismo muito agressivo e financeiramente poderoso, sobre o estado, intervindo na decisão política e apropriando-se de monopólios naturais, influenciando processos de crescente privatização de serviços públicos essenciais, negando ao sistema democrático o poder de regular as reais alavancadores económicos, exigindo impostos mais baixos ou mesmo nulos, que se em perdas sucessivas de capacidade de investimento público, os trabalhadores deste novo enquadramento económico vêem adicionar ao trabalho precário, aos turnos e longas jornadas, aos baixos (porque fazem apenas o que as máquinas não oferecem), à insegurança perante a vida, a crise dos sistemas de saúde, da educação, da habitação e, para agravar e somar à perda de empregos por via do “ajuste tecnológico”, auxiliam à abertura das fronteiras pelos mesmos que capturaram os votos através da sua máquina de propaganda. A sensação de alienação existe também em relação à sua noção de cultura, etnia e nação.

O ser humano valoriza a estabilidade, a previsibilidade, pela sensação de controle da situação que essas condições possibilitam. Os que dizem valorizar a “flexibilidade” e a “mudança” dizem-no porque se sentem no controlo. É só tirar-lhes o tapete e lá vão eles de volta para o refúgio seguro. Um jovem diz que não quer estabilidade até se juntar com alguém, constituir família e ter despesas fixas para pagar. Embora saibamos que isto é assim, temos um capital globalista que vende o contrário, vende a “flexibilidade” que mascara a desregulação da vida, vende a ideia de “liberdade” contratual, que ilude a precariedade da fonte de rendimento.

Para este trabalhador do século XXI, a sensação de que pode perder as constantes de sua vida, elas sejam a sua única moeda de troca – o trabalho – ou o seu único porto seguro, a casa, a nação, etnia ou religião, não será muito diferente do que têm sentido os seus homólogos da primeira metade do século XIX. Com as constantes da sua vida em causa, um mundo de inovação em versão acelerada e difícil de entender a percepção criada de que as organizações existentes, as instituições colectivas de classe, não atendem às suas necessidades, impõem estes trabalhadores numa situação de fragilidade total, que nem no estado se podem refugiar, uma vez que vêem a escassez dos serviços públicos, das próprias finanças estatais, por todo o lado.

Podemos estar horas a discutir se atualmente como organizações de classe existentes representam, ou não – eu penso que existem -, esses trabalhadores, mas, o que mais importante, é a percepção desses trabalhadores e não a nossa. Para eles tudo parece estar em causa, ao ponto de votarem em quem não defende os seus interesses, apenas porque têm a esperança de que esse alguém chore uma ruptura e destrua uma realidade que considera opressiva. Então, tal como os seus homólogos do passado tiveram uma reação emocional de ataque à tecnologia, não percebendo que poderiam, de forma organizada, usá-la em seu favor para obter melhores condições de trabalho, também os de hoje têm uma atitude desenfreada de tudo querer partir, ainda cegos diante da possibilidade de usarem essa força de forma organizada para, efetivamente criarem uma ruptura, mas dessa feita, com um plano de falência de um mundo que responde às suas necessidades. Porque, convenhamos, o modelo que anula eleições na Roménia ou isolada na Hungria, não respondeu também a essas necessidades, pelo contrário, trouxe-nos a este ponto.

Nesta fase de reação emocional, provocada por um fenômeno psicopolítico conhecido e abordado por pessoas como Byung Chul Han, este trabalhador acossado, vendo ruir tudo à sua volta torna-se, nesse sentido, alvo fácil da demagogia “mediarquica”. Um bloco imperialista ocidental em que uma classe capitalista tradicional, ligada aos sectores tradicionais e até aqui sem controlo, se sente ameaçada pela transição do centro económico para a Ásia, tal como os capitalistas e classes detentoras do início do século XX se viram acossados ​​pela perspectiva da perda das colónias. Desta feita, a transição do centro de poder para a Ásia, não apenas muda o paradigma económico, em que o poder transita do opressor para o oprimido. Ao mesmo tempo, estas classes dominantes vêem ruir o projecto neo-colonial, criado após a segunda guerra mundial, como contingência da perda das colónias e das concessões sociais decorrentes da existência de uma coisa chamada URSS, cuja existência, associada à decadência do império britânico, do mundo anglo-saxónico europeu e à emergência dos EUA, tinha, a par de outras coisas, desencadeado o recurso às doutrinas fascistas e sionistas.

Nesta mistura social também entram os taxistas, ameaçados pela Uber e atacando os condutores asiáticos, ao invés de atacar os que deixaram esta lógica empresarial parasita destruir suas empresas e postos de trabalho. Deveria mesmo ser treinado o efeito que a entrada da Uber na UE, a forma ilegal como entrou, a conivência dos poderes estatais com a sua entrada e o recurso a mão de obra migrante de origem asiática, teve na propagação deste tipo de racismo. Ainda por cima, uma classe dos taxistas não era conhecida, na UE, por ser a mais esclarecida e a vanguarda da classe trabalhadora. Nem por sombras. Por outro lado, foram eles que desabafou nos seus táxis todas as suas frustrações a milhões de clientes que usavam os seus serviços, muitos deles humildes, uma vez que os mais ricos usavam, por ser sinónimo de sofisticação, o Uber.

Já os lojistas ameaçados pela Amazons, aliexpress ou Temu, os restaurantes ameaçados pelas franquias de fast-food, os pequenos empresários ameaçados pela capacidade de investimento dos grandes conglomerados industriais internacionais, os operadores logísticos ameaçados pela UPS, DHL e Express Mail, também tiveram sua cota parte. Estas são uma correia de transmissão para os seus trabalhadores. Estes terão cumprido o mesmo papel que cumpriu o tecelão, o pequeno agricultor, o artesão pré-industrial. Mais uma vez, vivemos uma era de luta entre facções do capital, na qual os trabalhadores são instrumentalizados.

A prova de que estas percepções são plantadas é que os problemas que os trabalhadores desiludidos elegem como fundamentais, não são os seus problemas reais, mas aqueles que se viram ameaçados com a chegada de emigrantes em massa para trabalhar para a Uber, como o caso dos Taxistas, que substituíram as suas pequenas empresas para a Uber e para as sociedades unipessoais que trabalham para a Uber (e não só). Estes migrantes desenvolvem atividades que os indígenas não querem desenvolver ou as participações menores, caso da agricultura.

Aliás, a profusão de explorações agrícolas de culturas de exportação, facilmente perecíveis, associadas a necessidades massivas de mão de obra barata a transportar e instalar em locais do interior, desertificados, muito subdesenvolvidos e pouco populosos, também terá tido a sua quota parte. Imaginem que vão chegar cem trabalhadores asiáticos a uma aldeia com 50 pessoas, e tentem perceber o ambiente de invasão e insegurança que sentirão. Agora, imaginamos que os que prometeram reforçar a desertificação desenvolvida no interior de Portugal e, ao invés destes 100 migrantes entrarem numa aldeia com 50 residentes, a aldeia teria 500. Tudo seria diferente, certo? E mais diferente seria se, ao invés de culturas de exportação, produzíssemos culturas autóctones, mais rentáveis ​​e destinadas à nossa alimentação. Tudo isto foi obra de governos submetidos às políticas antipatrióticas da UE, que andaram, nos últimos 20 anos, a vender consecutivamente uma ilusão de desenvolvimento que nunca chegou. E fizemos-no enquanto ganhamos eleições à custa da máquina mediocrática, prometendo resultados para os quais nunca trabalharam.

Daí que não nos esperamos admirar que tudo se comece a precipitar para o abismo. Se, no passado, a amplificação do discurso dominante foi feita pela Igreja e pelas suas organizações sociais, na atualidade, a amplificação do discurso dominante é provocada pela Imprensa mainstream e pelas redes sociais e pelos seus bots, comprados com todo o dinheiro que esta gente pode comprar. Já não é na organização de classe, na associação de bairro, na colectividade ou, sequer, na taberna, que o trabalhador, o pequeno proprietário, bebem a sua informação. Ao invés de fazer em grupo, não faça isolamento do seu smartphone. Sem contradição, questionamento ou reflexão profunda. Do enriquecimento provem o fanatismo, do fanatismo a reação. As certezas absolutas e inequívocas são apenas advêm de maus resultados. Da depressão mental, só podem ocorrer reações emocionais imponderadas. Um animal acossado e isolado num canto morde em qualquer direção e foge para qualquer lado, apenas querendo sair da situação de abertura.

Uma vez mais, portanto, temos trabalhadores e camadas proprietárias de pequena dimensão aliadas a facções do capital que se sentem em perigo. Mas todas as reações têm um fim e conduzem à necessidade de ação. A resposta emocional, imponderada, à sua ineficácia, surgirá necessariamente, por razões que a própria necessidade e natureza das coisas bloqueadas, uma ação pensada, ponderada, um plano viável, abrangente e adaptado à realidade superveniente. E hoje, podemos dizer que, nesse aspecto, a classe trabalhadora e os pequenos empresários já estão mais avançados do que antes. Como disse Umberto Eco, o mundo avança entre movimentos de ação e reação. Marx conhecia em dialética materialista entre relações de forças construídas por movimentos sociais opostos, que se resolvem em avanços civilizacionais quando a favor dos trabalhadores; Elias Jabour fala de saltos de um ponto de equilíbrio para outro. Todas elas surgem na sequência da tese-antítese-síntese de Hegel, tal como surgiu de Heráclito e do seu “ninguém se pode banhar na mesma água do rio duas vezes”. Ou seja, tudo é movimento constante, de salto em salto, de ação em reação para ação outra vez. É assim que o conhecimento se constrói, é assim que a natureza evolui, é assim que as sociedades se desenvolvem.

A primeira revolução industrial, da reação emocional inicial, trouxe conquistas organizacionais extremamente importantes, fundamentais para as conquistas do século XX e para a derrota do nazi-fascismo dos anos trinta e quarenta. Tais conquistas permitiram que eu fosse um estado de bem-estar social nunca antes visto na civilização humana. À entrada do século XIX, como disse antes, os trabalhadores não possuíam ainda as suas próprias organizações, organizações que falam por eles, que respondem aos seus problemas concretos, que agregam a sua força. Essa reação e a ação que lhe sucedeu surgiram como respostas à contradição estabelecida entre um movimento opressor organizado e profundamente poderoso, face à fraqueza, isolamento e incapacidade de resposta congruente e consequente dos trabalhadores. A resolução da contradição dá-se com a criação dos sindicatos, primeiro e dos partidos e movimentos de classe (anarquistas, socialistas, comunistas), depois. Depois da conduta reativa, manipulada e emocional, sucedeu-se a conduta racional, planificada. Típica da serenidade de quem já descarregou a sua raiva e procura, após a fuga, uma solução efectiva para os problemas identificados.

Estas formas organizacionais nascem a capacidade de resposta ao movimento reacionário e a agregação da força individual em força coletiva. Daí surgiram revoluções como a Russa, Cubana, Portuguesa, Chinesa, ações de mudança que associadas à capacidade dessas organizações, obrigaram, mesmo no ocidente capitalista, à concessão do estado social europeu. Aquele que hoje todos sentimos em causa e ameaçado. Aquele que o capital ameaçado cobiça, por poder-lhe proporcionar, quando nas suas mãos, lucros incontáveis, também compensatórios da perda de poder à escala mundial.

É por isso que digo que, mesmo que a narrativa dominante tenha transmitido aos trabalhadores que as organizações existentes não falam por si, aos poucos, o isolamento, a necessidade de compreensão e a procura de ações mais eficazes na mudança do estado de coisas, farão reconectar toda esta força com as suas organizações. Estas, como é óbvio, também terão de a atração e representação, exigindo tal resposta uma coragem verdadeiramente revolucionária, capaz de imprimir um movimento dialético de adaptação, primeiro, e resposta e transformação às condições materiais existentes, hoje tão travestidas de novas roupas. Chamemos-lhes uma “batata”, vestidos de azul ou vermelho, serão em organizações de classe, de pendor revolucionário que a classe trabalhadora encontrará, uma vez mais, a libertação.

Não será um caminho fácil, uma obrigação num Ocidente decadente e em colapso. Não podemos desligar a sensação de perda que as populações desiludidas sentiram, o sentimento de ameaça às suas raízes, à sua cultura, aquele que foi um movimento constante e ainda muito presente, de transferências sucessivas de dimensões da nossa soberania nacional. Se as fronteiras da migração se abriram, foi porque a UE assim o decidiu, uma vez que, nos termos do Tratado de Lisboa, esta matéria é da sua competência; se o trabalho se degradou, foi porque a UE nos destinou uma economia de baixo perfil, voltada para o turismo e os serviços; se a moeda comprar menos e tudo parece mais caro, tal acontece porque perdemos a soberania monetária; sentimos que os serviços públicos se degradam, tal acontece porque transferimos a soberania orçamental e financeira, limitando a liberdade de investir nos serviços públicos e de construir um setor público capaz de transferir a economia; se sentimos a energia cara, os combustíveis dispendiosos, tal acontece porque transferimos a soberania económica, sujeitando-nos à agenda privatizadora e deslocalizadora da UE; se sente o país a ficar para trás, os jovens a abandonar-nos, tal se deve à agenda de mobilidade que visa dar mão de obra aos países mais ricos.

A prova de que este movimento é meramente reativo, reacionário, por mais explicável e transparente que parece ser, reside no facto de nenhuma das dimensões que causam esta reação, ter resposta no programa dos partidos “populistas” ou “demagógicos” que agregam estes votos, demonstrando que apenas beneficiam da máquina mediocrática, tal como os seus irmãos do centrão e da esquerda fofinha. Se se tratasse, efectivamente, de um processo de mudança, todos estes problemas contariam com uma resposta e, à excepção dos migrantes asiáticos, que se pretendem expulsar, nenhum dos problemas sociais reais que causam esta sensação de insegurança encontra resposta nos programas da AfD, de Trump, da AD, de Simeon ou Le Pen. Tal como se vê agora com Meloni. A resposta a este estado de coisas exige muito mais do que falar mal de tudo e todos, exige a coragem e capacidade de romper, efetivamente, com os poderes instituídos. Sejam eles da UE, direita neoliberal reacionária, mas globalista, sejam os da “nova direita” Trumpista, reacionária, mas tradicionalista, que opta por atrair os trabalhadores, atacando outros trabalhadores mas nunca quem os explora ou quem os escraviza.

Sem esta resposta, no caso Português, uma procura das suas origens, da sua história e raízes e uma viragem para o mundo, sem intermediários ou paizinhos – a este respeito o Chega nem a fratura faz com a OTAN e é isso que o torna “tolerável” face à AfD ou a Le Pen – beneficiando das pontes construídas outrara, das relações com os países de língua portuguesa, com as regiões como Goa ou Macau que nos conectam às superpotências da atualidade e do futuro, Portugal continuará a ser carne para canhão de países decadentes que procuram segurar-se tratando-nos como o seu “pátio das traseiras”.

Procurar essa resposta implica a coragem necessária para dizer que esta UE falhou, que se trata de um resquício da guerra fria e nenhuma função mais a sobra do que a instrumentalização das nações mais pequenas, a extensão artificial das fronteiras da OTAN e o esgotamento dos nossos parcos recursos, para seu benefício, para benefício dos diretórios de poder que a alimentam e controlam. É bem visível a instrumentalização que França e Alemanha estão a fazer da União Europeia, num momento de corrida às armas, usando-a como extensão das suas estratégias belicistas.

Símbolo desta UE perdida no mundo e em si próprio é, uma vez mais, o advento de um poderoso movimento reacionário, russofobo e neocolonial no seu seio. Seja ele alimentado pela ganância globalista imposta pelas agendas destrutivas de Von Der Leyen ou pelo Trumpismo isolacionista da “nova direita”.

Quanto mais deprimirmos o esclarecermos, mais depressa construiremos o novo mundo que surgirá essas ruínas.

Hugo Dionísio é advogado, investigador e analista geopolítico. É proprietário do blog Canal-factual.wordpress.com e cofundador do MultipolarTv, um canal do YouTube dedicado à análise geopolítica. Desenvolve atividade como ativista dos direitos humanos e sociais, sendo membro da direção da Associação Portuguesa de Advogados Democráticos. É também investigador da Confederação dos Sindicatos dos Trabalhadores Portugueses (CGTP-IN).

Fonte original:

https://strategic-culture.su/news/2025/05/22/eleicoes-em-portugal-o-espelho-de-uma-uniao-europeia-em-ruinas/

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