Pepe Escobar. O nascimento das bebês gêmeas: o gingado estratégico da Rússia enlouquece a OTANistão. Mundo Multipolar, 22 de fevereiro de 2022.

 

O nascimento das bebês gêmeas: o gingado estratégico da Rússia enlouquece a OTANistão

Bandeira Novorossiya

A história irá registrar que o nascimento das bebês gêmeas – as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk – apenas poucas horas antes de 22/02/22, foi simultâneo ao nascimento do verdadeiro mundo multipolar do século 21.

Como as minhas colunas têm enfatizado já há alguns anos, Vladimir Putin vinha cuidadosamente nutrindo seu Sun Tzu interior. E agora tudo foi revelado: “Deixe que seus planos sejam escuros e impenetráveis como a noite, e quando você se mover, caia como um raio.”

O raio estava há meses no processo de ser meticulosamente polido. Parafraseando Lênin, que “criou a Ucrânia” (copyright Putin), nós realmente vivemos muitas décadas apenas nestes últimos dias. Tudo começou com as exigências detalhadas de garantias de segurança enviadas aos americanos, que Moscou sabia que seriam rejeitadas. Depois, houve a declaração conjunta Rússia-China no início dos Jogos Olímpicos de Inverno – que codifica não apenas a parceria estratégica, mas também os principais princípios do mundo multipolar.

Putin assina reconhecimento 'imediato' das regiões do Donbass. Foto: Sputnik / Alexei Nikolsky

A culminação foi um impressionante discurso à nação por Putin, com quase uma hora de duração, logo após a sessão ao vivo do Conselho de Segurança da Rússia deliberando sobre o pedido de independência das Repúblicas Populares de Donetsk (DPR) e Lugansk (LPR) (aqui está uma versão condensada).

Poucas horas depois, em uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU, o representante permanente russo Vasily Nebenzya explicou com precisão porque o reconhecimento das bebês gêmeas não enterra os acordos de Minsk.

Na verdade, as bebês gêmeas declararam sua independência em maio de 2014. Em 2015, elas assinaram os acordos de Minsk como uma das partes interessadas. Teoricamente, elas poderiam até retornar à Ucrânia se Kiev se prontificasse a respeitar os acordos, algo que nunca acontecerá porque os EUA estão vetando isto desde 2015. Além disso, o povo de Donbass não quer ser submetido a um regime que abriga neonazistas.

Como Nebenzya delineou:

“Gostaria de lembrá-los que, no momento da conclusão dos acordos de Minsk, a LPR e a DPR já haviam declarado independência. O fato de a Rússia hoje reconhecer isso não muda a composição das partes nos acordos de Minsk, já que a Rússia não é uma [...]. Outra coisa é que os acordos de Minsk há muito são abertamente sabotados pela Ucrânia sob os auspícios de nossos colegas ocidentais. Agora vemos que muitos colegas querem assinar que os acordos de Minsk estão mortos. Mas este não é o caso […]. Ainda estamos abertos à diplomacia, mas não pretendemos permitir um novo massacre sangrento no Donbass.”

E aqui está o argumento decisivo, abordando diretamente o apoio do império ao assassinato de russos étnicos em Donbass:

“A principal tarefa de nossa decisão [de reconhecer a independência] foi preservar e proteger essas vidas. Isso é mais importante do que todas as suas ameaças.”

E eis aqui: Responsabilidade para Proteger (R2P) [a sigla correspondente a Responsibility to Protect - nota dos tradutores], um conceito criado pelos americanos para lançar guerras, usado para prevenir uma.

Aquela nulidade certificada, o chanceler alemão Scholz, ridicularizando a caracterização de Putin sobre um genocídio no Donbass como “risível”, foi um fator decisivo para o nascimento das bebês. Putin, em seu discurso à nação, dedicou tempo especialmente para detalhar o massacre em Odessa:

“Não podemos deixar de estremecer quando lembramos a situação em Odessa, quando pessoas foram queimadas vivas [...]. E estes criminosos que fizeram isso, não são punidos [...]. Mas nós sabemos seus nomes, e faremos de tudo para puni-los [...] e levá-los à justiça.”

E a China?

Geopoliticamente, em termos eurasianos, duas grandes questões se destacam: o papel da CSTO [ sigla correspondente a Collective Security Treaty Organisation, ou em português Organização do Tratado de Segurança Coletiva - nota dos tradutores] e a resposta da China.

Se olharmos para o Artigo 19, Capítulo VI da Carta da CSTO, aprendemos que

“qualquer Estado que compartilhe os objetivos e princípios da Organização e esteja pronto para assumir as obrigações contidas nesta Carta e em outros tratados e resoluções internacionais em vigor no âmbito da Organização pode tornar-se membro da Organização.”

Isso abriria as portas para que as bebês gêmeas, assim que finalizassem todos os esforços burocráticos relativos a nações novas e independentes, solicitassem a adesão à CSTO. Aliás, o secretário-geral da CSTO, Pashinian, já foi a Moscou para discutir o assunto.

A China já é uma questão muito mais complexa. Um dos princípios-chave da política externa de Pequim é a luta contra o separatismo – embutido na fundação da SCO [sigla para Shanghai Cooperation Organisation, ou em português Organização para Cooperação de Xangai - nota dos tradutores]. Portanto, Pequim não pode reconhecer as bebês gêmeas, ou o que equivaleria à Novorossiya [Nova Rússia] – sim, Putin pronunciou essa palavra mágica – antes que a própria Kiev o faça ou, o que é uma possibilidade séria, se desintegre completamente.

O Ministério das Relações Exteriores até agora tem sido extremamente cauteloso. Wang Yi reiterou

“a posição de longa data da China de que as preocupações legítimas de segurança de todos os países devem ser respeitadas, e os propósitos e princípios da Carta da ONU devem ser mantidos.”

Mais adiante, presumivelmente após algumas trocas sérias entre Wang Yi e Lavrov, a China sempre pode encontrar inúmeras maneiras de ajudar não oficialmente as bebês gêmeas – incluindo o avanço da conectividade relacionado ao BRI [ sigla para Belt and Road Initiative, ou em português Iniciativa de Cinturão e Estradas, popularmente conhecida também como as Novas Rotas da Seda - nota dos tradutores] e a projetos de desenvolvimento sustentável.

Quanto à desintegração de Kiev, isso está diretamente ligado a Moscou exigindo a parada imediata da mini-blitzkrieg contra o Donbass, caso contrário, eles terão total responsabilidade. Sim, os partidários do regime serão caçados e punidos – incluindo um possível Tribunal de Crimes de Guerra. Não é à toa que todos os tipos de ratos oligárquicos/políticos, grandes e pequenos, estão fugindo para Lviv, Polônia e Reino Unido.

O efeito Munique

A intervenção de todos os 12 membros na sessão do Conselho de Segurança [da Rússia], combinada com o discurso de Putin à nação, foi o material de um drama geopolítico emocionante. A linguagem corporal de Putin e o olhar em seus olhos testemunharam a imensa gravidade do momento – e tudo veio à tona quando ele embarcou em uma concisa lição de história que abrangeu um século.

Mal contendo sua raiva pelas inúmeras maneiras pelas quais a Rússia tem sido vilipendiada pelo Ocidente, e não fazendo prisioneiros quando se refere ao comunismo, o que mais se destacou foi a interpretação clara do antagonismo insuperável entre as ilhotas anglo-americanas e o coração [Heartland] civilizacional – ou o choque entre potências marítimas e potências terrestres. Esse clássico da Eurásia foi a maior parte de sua exposição: o reconhecimento das bebês gêmeas levou menos de três minutos.

19 de fevereiro de 2022, Baviera, Munique: Ursula von der Leyen (R), Presidente da Comissão Europeia, entrega o Prêmio Ewald von Kleist 2022 como prêmio por contribuições especiais para a segurança internacional ao Secretário-Geral da OTAN Jens Stoltenberg no segundo dia da Conferência de Segurança de Munique. Foto: Sven Hoppe/dpa

A Conferência de Segurança de Munique, no fim da semana passada, deixou tudo tão explícito. Munique, por mais aterrorizante que fosse em termos de uma congregação de galinhas sem cabeça posando como águias, pelo menos confirmou que tudo foi revelado.

O inimigo é a Rússia. A expansão infinita da OTAN – para o espaço sideral – é contra a Rússia. E então tivemos um desfile de ameaças adicionais: nenhum desarmamento na Europa Oriental, cortando a economia russa da UE, fim do Nord Stream 2, Ucrânia na OTAN, ordem mundial construída sobre “valores liberais universais”.

Munique pronunciou “Nenhum acordo de forma alguma” – que foi exatamente o que Putin, Lavrov, Patrushev e cia. esperavam, a retórica belicista enterrando qualquer discussão significativa sobre migração, inflação, guerras cibernéticas, a crise energética europeia e, claro, a única coisa que importa para o MICIMATT (military-industrial-congressional-intelligence-media-academia-think tank complex/complexo militar-industrial-congressional-inteligência-mídia-academia-think tank, conforme definido por Ray McGovern): vamos ordenhar este lote Eurotrash por incontáveis bilhões em novos contratos, vamos isolar a Rússia, vamos destruir o Nord Stream 2 para vender a eles nosso LNG [Liquid Natural Gas, em português gás natural líquido, também conhecido como gás de xisto, geralmente de qualidade inferior – nota dos tradutores] ultra caro, vamos mantê-los na coleira – para sempre.

Então, na verdade, nem é uma guerra contra a Rússia: o Império endividado de US$ 30 trilhões com um exército woke/identitário anexado simplesmente não pode pagar. Sem mencionar o surto certeiro no caso de receberem um telefonema do Sr Khinzal e do Sr. Zircon: a deixa para a espetacular exibição russa de superioridade "militar e técnica", hipersônica e não-encenada, ironia das ironias, em sincronia com o circo de Munique.

O que temos aqui é tão ruim: apenas uma oferta moribunda que você-não-pode-recusar a ser infligida à UE.

A dança de segurança indivisível

O raivoso show “Nenhum Acordo” de Munique; a cripto-blitzkrieg da Ukro, ordenada imperialmente, contra o Donbass; e o papel da comunidade estadunidense privada de inteligência – um termo aterrador cunhado por Andrei Martyanov – selou completamente o acordo para as deliberações do Conselho de Segurança e a decisão de Putin.

Considerando a estupidez ideológica da atual gangue de Bruxelas – Stoltenberg, von der Leyen, Borrell – incapazes de entender até mesmo a economia básica, o fato é que a UE sem energia russa está condenada. Martyanov enfatiza o algoritmo: a Rússia pode se dar ao luxo de romper com a Europa. A Europa, não. Os EUA só querem lucrar. E nem estamos falando sobre as terríveis ramificações da crise sistêmica em toda a OTAN.

Mesmo que Moscou jogue um jogo muito longo e calculado, isso não significa necessariamente que a Rússia estará “ganhando” as bebês gêmeas enquanto “perde” a Europa. O gingado estratégico da Rússia confunde repetidamente o combo atlanticista. A comunidade privada de inteligência dos EUA estava prevendo uma “agressão” russa a cada dois dias – e ainda está. Em vez disso, eles tiveram as bebês gêmeas como as últimas repúblicas independentes do Sul Global.

Mesmo antes de Munique, da cripto-blitzkrieg Ukro e do reconhecimento das bebês gêmeas, Moscou havia alertado novamente que poderia responder com “medidas militares e técnicas” para garantir sua própria segurança depois que os EUA e a OTAN ignoraram descaradamente pontos-chave de sua proposta de uma arquitetura de segurança europeia de longo prazo e, em vez disso, pegaram questões “escolhidas a dedo” de um pacote.

Moscou não vai deixar os americanos fugirem da já notória resposta russa de 10 páginas. Putin, dirigindo-se ao Stavka, já havia alertado que “estamos em uma situação […] em que somos forçados a resolvê-la.” O que nos leva ao que John Helmer habilmente qualificou como a defesa de caixa preta da Rússia. A beleza é que ninguém sabe o que está dentro da caixa preta.

Formigas confusas devido a rachaduras no ninho. Representação das potencias ocidentais da OTAN depois das ações da Rússia.

Entram, mais uma vez, as “medidas técnico-militares” que serão “recíprocas” (Putin) ao que os EUA e a OTANistão já estão implantando contra a Rússia. Elas não serão necessariamente implementadas no Mar Negro, no Mar de Azov, no espaço aéreo acima de Donbass, nem mesmo no ciberespaço. Pode ser em qualquer lugar – do teatro Sírio à América Latina.

Surpresa! É disso que se trata a ambivalência estratégica, a ambiguidade ou – vamos ao swing – o gingado. Você não acredita no princípio da segurança indivisível? Ok. Agora ditamos o ritmo de segurança. Você não vai parar de implantar armas nucleares fora do seu território? Ok. Aqui está alguma reciprocidade. Você não vai conceder garantias juridicamente vinculativas à nossa segurança? Ok. Conheça nossas medidas “técnico-militares.”

Agora dancem, otários.


Fonte: Original em inglês gentilmente cedido pelo autor.
Publicado em inglês: https://thesaker.is/the-birth-of-the-baby-twins-russias-strategic-swing-drives-natostan-nuts/

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