Debate Internacionalista: Tucídides sobre a peste


Prof. Lejeune MIrhan

09:08 (há 1 hora)
para gtarabepalestinaja
Tucídides: "Sobre a peste"[1] 
13/4/2020, citado por Pepe Escobar, em FacebookRetraduzido - só para ajudar a ler -, do ing.[2] ; e confrontado c/trad. bilíngue gr.-fr.)[3]  

Dentre os trechos mais conhecidos da História da Guerra do Peloponeso [TUCÍDIDES, 460-400aC]. História da Guerra do Peloponeso. Trad. e apres. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. Edição bilíngue. São Paulo: Martins Fontes, 1999, 228p. (Livro I), in 
Research Gate] está o relato que faz da ação da peste que matou quase 1/3 da população de Atenas no verão de 430 e causou mais mortes que todo o restante da Guerra Arquidâmica. (Uma vala de enterro coletivo descoberta em 1994 ilustra a terrível mortandade; a doença foi identificada como febre tifoide.) O que mais chama a atenção é a total ausência de qualquer explicação: a história oferece uma descrição clínica dos sintomas, mas não discute a causa da doença. Colega mais velho de Tucídides, Heródoto de Halicarnasso teria dito que “os deuses assim o quiseram”, ou coisa semelhante. Tucídides recusa-se a fazer o mesmo. (...)

Todas as tentativas de identificar a doença com a febre hemorrágica ebola, 
mormo, tifo ou varíola fracassaram. Esse não é relatório médico; é narrativa moral, apresentada como relatório médico [aqui].*******

[2.47.2] Nos primeiros dias do verão, os peloponesianos [espartanos] e seus aliados, com dois terços de suas forças, como da primeira vez, invadiram Ática, sob o comando de Arquidamos, filho de Zeuxidamos, rei de [Lacedemônia] Esparta. Avançaram e arrasaram o país.

[2.47.3] Não muitos dias depois da chegada deles a Ática, a peste começou a aparecer entre os atenienses. Dizia-se que irrompera antes em muitos locais, sobretudo nos arredores de Lemnos e noutros pontos; mas não havia notícia em lugar algum de tal pestilência, tão ampla e tão mortal [quanto em Ática].

[2.47.4] Nem os médicos tiveram, de início, qualquer serventia, ignorantes que eram de como tratar aqueles doentes, e logo morreram eles ainda mais violentamente, dado que visitavam doentes mais frequentemente que qualquer outra pessoa; nenhuma arte humana teve qualquer melhor sorte. Nenhuma ciência humana tinha qualquer serventia. Súplicas nos templos, oráculos e coisas assim logo também se comprovaram fúteis, até que a avassaladora natureza do desastre paralisou por fim também os suplicantes e oráculos.

[2.48.1] Começou, segundo contam, nas partes da Etiópia, dali chegou ao baixo Egito, à Líbia e a grande parte da terra do Rei.

[2.48.2] Caindo de repente sobre Atenas, como acontecera em Pireu onde fez as primeiras vítimas – que foi quando disseram que os peloponesianos haviam envenenado os poços, dado que em Pireu ainda não havia fontes – e depois apareceu na cidade alta, quando as mortes tornaram-se muito mais frequentes.

[2.48.3] Deixo a outros escritores, médicos ou leigos, segundo suas capacidades, todas as especulações sobre origens e causas prováveis de tamanha perturbação; quanto a mim, simplesmente apontarei a natureza do mal e explicarei os sintomas pelos quais talvez possa ser reconhecido pelo estudioso, se outra vez irromper. É o que posso melhor fazer, pois tive a doença eu mesmo, e observei o modo como operou em outros.

[2.49.1] Até ali, aquele ano é reconhecido como livre de doenças, mais que nunca; e poucos casos como os que ocorreram, todos acabavam nessa doença.

[2.49.2] Como regra, contudo, não havia causa ostensiva; pessoas em bom estado de saúde eram repentinamente acometidas de violentos calores na cabeça, e vermelhidão e inflamação nos olhos, em partes internas, como faringe ou língua que sangravam, respiração alterada, e hálito não natural e fétido.

[2.49.3] Na sequência vinham espirros e rouquidão, depois dos quais a dor rapidamente chegava ao peito, e produzia tosse seca. Quando se fixava no estômago, causava enjoos; e vinham descargas de bile de todos os tipos que os médicos conheciam, acompanhadas de grave mal-estar.

[2.49.4] Em muitos casos sobrevinham náuseas, com espasmos violentos e sem vômitos, que em alguns casos logo cessavam; noutros, só muito depois.

[2.49.5] Externamente, o corpo não se mostrava muito quente ao toque, nem pálido, mas avermelhado, e rompia-se em pequenas pústulas e úlceras. Mas internamente o corpo ardia de tal modo que o doente não suportava nem roupa nem lençóis, nem dos mais leves; de fato, só completa nudez. O que mais o paciente desejava era jogar-se em água fria; o que realmente fizeram doentes abandonados, que se lançavam em barris de água da chuva, acometidos da agonia de invencível sede; mas nada mudava, bebessem muito, ou nada bebessem.

[2.49.6] Além disso, a sensação miserável de não conseguir nem dormir nem descansar era tormento sem fim para todos os doentes.

Mas o corpo não se consumia enquanto o mal estava no auge, de fato resistia muito bem à devastação da doença; de tal modo que ainda tinham alguma energia quando os doentes afinal sucumbiam à inflamação interna, como na maior parte dos casos, no 7º ou 8º [9º ou 7º]dia. Mas se superavam esse estágio, a doença descia ainda mais para os intestinos, induzindo ulceração violenta acompanhada de diarreia severa, e isso trazia extrema fraqueza em geral fatal.

[2.49.7] Como o mal se fixava primeiro na cabeça e percorria seu curso dali para todo o corpo, mesmo quando não se provava mortal ainda assim deixava suas marcas nas extremidades;

[2.49.8] Pois se fixava nas partes íntimas e nos dedos [das mãos e] dos pés, e muitos perderam dedos, mesmo que tenham sobrevivido; outros perderam a visão. Outros se recuperaram, mas despertaram com perda total de memória, sem saber quem eram ou sem reconhecer os amigos.

[2.50.1] Mas ainda que a natureza do mal fosse tal que supere qualquer descrição, e os surtos, terríveis demais para que a o corpo humano os suportasse, era em outras circunstâncias que se via mais claramente a real diferença entre aquela e todas as demais doenças conhecidas. As aves de rapina e outras bestas que se alimentam de cadáveres humanos, ou não tocavam nesses mortos (e havia muitos pelas ruas, insepultos), ou, se os tocavam, morriam.

[2.50.2] Prova disso, observou-se que as aves de rapina de fato desapareceram; não sobrevoavam os cadáveres e, de fato, sumiram completamente. Mas claro que os efeitos podiam ser constatados em cães, habituados a viver próximos do homem.

[2.51.1] Se se desconsidera a variedade de casos particulares que eram muitos e muito peculiares, segundo o temperamento de cada doente, esses foram os traços gerais do mal. Enquanto durou o mal, a cidade mostrou-se imune a todas as demais doenças comuns; ou, se havia lguma outra doença, terminava quando essa se manifestava.

[2.51.2] Morria-se sem socorro e morria-se cercado de todas as atenções. Não se encontrou remédio que pudesse ser usado como específico; o que fazia bem num caso, fazia mal noutro.

[2.51.3] Constituições fortes e fracas provaram-se igualmente incapazes de resistir, todas igualmente varridas, mesmo que tratadas com a máxima precaução.

[2.51.4] Mas o traço, de longe, mais terrível dessa doença era o desânimo que se seguia quando alguém se sentia adoecer, porque o desespero no qual mergulhava roubava ao doente todo seu poder de resistência, e o tornava presa ainda mais fácil para a doença; além disso havia o espetáculo terrível de homens morrendo como ovelhas, contaminados no esforço de se ajudarem uns os outros. Isso causou a mais alta mortandade.

[2.51.5] Por outro lado, se os homens não se visitassem por medo, muitos morriam por abandono; de fato, muitas casas acabaram vazias, por falta de enfermeiros; por outro lado, se as pessoas saíam para ajudar alguém, morriam.
Foi especialmente o caso de pessoas bem-intencionadas: a honra levava-as a não se preservarem na ajuda em casa dos amigos, onde até os membros da família estavam mortalmente consumidos pelos gemidos dos moribundos; e sucumbiam à força da catástrofe.

[2.51.6] Mas foi com os que se recuperaram da doença que os doentes e os moribundos encontraram maior compaixão. Esses sabiam, por experiência, e já não temiam por eles mesmos; porque nunca se soube de alguém que tivesse adoecido duas vezes. Ou pelo menos, jamais se soube de quem tivesse morrido na recaída. E essas pessoas não só recebiam congratulações de outros, mas elas mesmas também, no entusiasmo do momento como que cultivavam a vã esperança de que estariam salvas, para todo o sempre, de qualquer tipo de doença.

[2.52.1] Agravamento da calamidade existente veio com o influxo de pessoas, do campo para a cidade, o que foi sentido especialmente nas novas levas de recém-chegados [movidos pela guerra].

[2.52.2] Como não havia casas para receber essas pessoas, tinham de ser acomodadas, no auge do calor, em tendas sufocantes, onde a mortalidade crescia sem limites. Os corpos dos agonizantes empilhavam-se, pessoas semimortas rolavam pelas ruas e reuniam-se em torno das fontes, na ânsia por água.

[2.52.3] Locais de cultos, onde também muitos se autoinstalaram, estavam lotados de cadáveres de pessoas que morreram ali; e onde morreram, ficaram; porque o desastre superava todos os limites, os homens, sem saber o que seria deles, tornaram-se extremamente incautos e descuidados de tudo, do sagrado, como do profano.[4]

[2.52.4] Todos os ritos do sepultamento antes em uso foram alterados completamente, e uns enterravam outros do melhor modo possível. Muitos, pela carência de práticas apropriadas, dado que tantos dos amigos de tantos já haviam morrido, recorreram aos mais desavergonhados sepultamentos: às vezes, seguindo quem já tivesse erguido uma pira [funerária], jogavam o segundo cadáver sobre o primeiro já ali deposto, acendiam a pira e fugiam. E assim foi.

[2.53.1] Nem foi essa a única modalidade de extravagância sem lei que deve sua origem à peste.

[2.53.2] Homens então se aventuravam displicentemente a fazer e como bem quisessem coisas que antes só faziam pelos cantos, vendo as rápidas transições produzidas por pessoas prósperas que morriam, e eram sucedidas, nas propriedades, por gente que antes nada tivera.

[2.53.3] E decidiram gastar muito rapidamente e divertir-se, considerando a própria vida e a nova riqueza como coisas que também se acabariam. Perseverar no que os homens chamavam de honra não era atitude popular, tanto era incerto se alcançariam seu objetivo; e decidiu-se que o gozo presente, e tudo que contribuísse para ele, era ao mesmo tempo honrado e útil. Nenhum temor aos deuses ou à lei dos homens os deteria.

[2.53.4] Quanto ao temor aos deuses, entenderam que dava na mesma, cultuassem os deuses ou não, dado que viam morrer todos, dos que cultuavam e dos que não cultuavam os deuses; e quanto ao temor à lei dos homens, ninguém esperava viver o suficiente para ser levado aos tribunais por algum crime; e cada um sentia que já lhe pesava sobre a cabeça sentença muito mais severa. E antes de que fosse cumprida, era perfeitamente razoável querer gozar um pouco a vida.

[2.54.1] Tal era a natureza da calamidade, e muito pesou sobre os atenienses; dentro da cidade rugia a morte; fora, a devastação.

[2.54.2] Dentre outras coisas de que se lembravam nos seus padecimentos, muitos naturalmente lembraram-se do seguinte verso, que os anciãos diziam conhecer há muito tempo:

Uma guerra dórica virá e com ela, peste.

[2.54.3] E surgiu uma disputa sobre se o verso dizia “escassez”, “fome” [gr. Limos; ing. dearth] ou se dizia “peste” [gr. Loimos; ing. death]; mas naquela circunstância a pendência foi obviamente decidida a favor de “peste”; porque o povo fez o verso antigo adequar-se aos sofrimentos presentes. Acho contudo que se outra guerra dórica algum dia viesse contra nós, e a escassez/fome acontecesse para acompanhá-la, o verso seria provavelmente recitado de modo que correspondesse.

[2.54.4] O oráculo que os espartanos receberam era então lembrado pelos que sabiam dele. Quando se perguntou ao deus se os espartanos deviam ir à guerra, o deus respondeu que, se combatessem com toda a sua força, a vitória seria deles; e o próprio deus combateria ao lado dos espartanos.[5]

[2.54.5] Os eventos supostamente confirmaram esse oráculo. Porque a peste apareceu no momento em que os peloponesianos invadiram Ática, e nunca chegou ao Peloponeso (não, pelo menos, a ponto de ser considerada); e causou a pior devastação em Atenas e nos arredores de Atenas, a mais populosa de todas as cidades.

[2.55.1] Eis a história da peste
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[1] NOTA DA VERSÃO EM FRANCÊS (aqui traduzida): Pode-se considerar essa epidemia como uma febre do tipo da “dengue” [?], favorecida pelo excesso de chuvas e falta de ventos purificadores, desenvolvida pela superpopulação na cidades, de emigrados dos arredores rurais, e mal instalados, pela falta de água potável em quantidade suficiente, pelo depauperamento físico e moral que advinha da guerra.

                     A epidemia durou quatro anos, violenta nos anos 430 e 429 a.C, acalmou por cerca de 18 meses, recomeçou em 427 e desapareceu no final do mesmo ano. Só se conhece o múmero de vítimas dentro do exército. Tudídides (III, 87) estima em 4.400 hoplitas e 300 cavaleiros. Para a população civil, diz não poder dar números, tal a quantidade de mortos. Cf. Dr. J. P. Béteau,  La Peste d'Athènes, 1934.
[2] Retraduzido da tradução gr.-ing., de Thucydides 2.47.1-55.1, de Richard Crawley, aqui [NTs].
[3] Confrontado com a tradução gr.-fr. em edição bilíngue, de Thucydide : livre II, “La peste à Athènes”, aqui, sem créditos de tradutor [NTs].
[4] NOTA DA VERSÃO EM FRANCÊS: No relato da peste de Milão (1630), Manzoni também assinala o avanço da depravação em proporções espantosas. Um frenesi de gozo imediato tomou conta dos poupados pela peste, todos os meios de enriquecer pareciam legítimos, para satisfazer a sede de prazeres, antes de morrer.
[5] NOTA DA VERSÃO EM FRANCÊS: Apolo, deus da medicina, curava as doenças, mas também enviava pestes. A epidemia seria um meio pelo qual o deus ajudaria os dórios, seus fiéis adoradores.

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Car@s internacionalistas: caso queira nos indicar um ou uma companheira para integrar esta lista de artigos internacionais traduzidos pelo coletivo de tradutores Vila Vudu pode me mandar um e-mail pessoal no endereço: lejeunemgxc@uol.com.br Muito Obrigado... Prof. Lejeune

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