A propósito de Caçadas de Pedrinho - Vera Candau

A propósito da polêmica sobre o livro
“Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato

Vera Maria Candau[1]


Nas últimas semanas estamos sendo bombardeados pela grande mídia- escrita e televisiva-, assim como pelas redes sociais com diferentes e plurais comentários sobre o Parecer CNE/CEB nº. 15/2010, que expressa a posição do Conselho Nacional de Educação em relação à temática suscitada pela utilização da obra de Monteiro Lobato “Caçadas de Pedrinho” em escolas da Secretaria de Educação do Distrito Federal.
Mais uma vez a obra de Monteiro Lobato suscita uma intensa polêmica. Sou professora desde os anos sessenta do último século, quando terminei o Curso no Normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro e ingressei no sistema público de ensino como professora primária. Nestes cinquenta anos de exercício do magistério, periodicamente, a obra de Monteiro Lobato tem suscitado discussões sobre diferentes temas como higienismo, evolucionismo, racismo, questões ambientais, entre outras. Portanto, esta não é uma questão nova. O que chama a atenção na polêmica atual não é sua originalidade, mas a reiteração de posições, de atitudes que encaram como “censura” a explicitação da necessidade de orientação adequada do trabalho pedagógico sobre questões suscitadas por textos literários no cotidiano escolar.


A posição do parecer do CNE

O referido parecer do Conselho Nacional e Educação, que teve como relatora a professora Nilma Lino Gomes, professora da Faculdade de Educação da UFMG, reconhecida pela comunidade acadêmica por sua sólida produção científica, seriedade intelectual e compromisso com a construção de uma escola pública de qualidade e a afirmação da democracia no nosso país - também autora de livro de literatura infantil -, assume uma posição que pode ser assim sintetizada:

- afirma a importância da formação de professores “que sejam capazes de lidar pedagogicamente e criticamente com o tipo de situação narrada pelo requerente, a saber, obras consideradas clássicas presentes na biblioteca das escolas que apresentem estereótipos raciais”;

- na hipótese de algumas destas obras apresentarem preconceitos e estereótipos, a editora responsável pela publicação deveria inserir no texto de apresentação “uma nota explicativa e esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura”. Convém ter presente que no livro “Caçadas de Pedrinho” já foi incluída nota afirmando que a aventura narrada ocorreu em tempo “em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo IBAMA” e “nem a onça pintada era uma espécie ameaçada de extinção”;

- propõe que a Secretaria de Educação do Distrito Federal oriente as escolas a realizar avaliação diagnóstica sobre a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, inserindo como um dos componentes desta avaliação a análise do acervo bibliográfico, literário e dos livros didáticos adotados pela escola, bem como das práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial dele decorrentes;

- explicita que tais ações sejam realizadas como cumprimento do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, o qual reza como uma das atribuições dos sistemas de ensino da educação brasileira a incorporação de conteúdos previstos nas referidas Diretrizes Curriculares em todos os níveis, etapas e modalidades de todos os sistemas de ensino. Portanto, deverão ser discutidas e realizadas em conjunto com o corpo docente e com a comunidade escolar.

O parecer termina afirmando no “voto do relator”:

“A despeito do importante caráter literário da obra de Monteiro Lobato, o qual não se pode negar, é necessário considerar que somos sujeitos da nossa própria época, porém, ao mesmo tempo, somos responsáveis pelos desdobramentos e efeitos das opções e orientações políticas, pedagógicas e literárias assumidas no contexto em que vivemos. Nesse sentido, a literatura em sintonia com o mundo não está fora dos conflitos, das tensões e das hierarquias sociais e raciais nas quais o trato à diversidade se realiza. São situações que estão presentes nos textos literários, pois estes fazem parte da vida real. A ficção não se constrói em um espaço social vazio”.

Trata-se, portanto, de oferecer às crianças e adolescentes das nossas escolas, como componentes da qualidade da educação que queremos construir, situações pedagógicas em que a contextualização, a problematização e a reflexão crítica sobre textos literários sejam trabalhadas, tendo como horizonte a afirmação de uma cultura dos Direitos Humanos, a superação de toda forma de preconceito e discriminação e a valorização dos diferentes grupos sociais, étnico-raciais e culturais.


A questão central

Há alguns anos, coordenei um processo de formação continuada de professores da rede municipal do Rio de Janeiro, em convênio com a organização não governamental Novamerica[2], na perspectiva da Educação em Direitos Humanos. Entre os temas trabalhados estavam questões sobre preconceito e discriminação na sociedade e no cotidiano escolar. Desenvolvemos o curso através de oficinas pedagógicas, estratégia didática que privilegia a articulação entre as dimensões cognitiva, afetiva e de ação, em que os educadores e educadoras vivenciavam várias situações. Entre elas simulava-se uma situação de sala de aula em que um aluno negro chega atrasado e entra discretamente na classe, mas ao ser visto por um dos colegas, este afirma em voz alta: “chegou o neguinho, sujou!”. A partir deste momento, os professores e professoras eram convidados a se colocar no lugar da professora e escrever sinteticamente como reagiriam. Depois deveriam assumir o papel do “neguinho” e imaginar como se sentiriam e o que fariam, e o mesmo em relação ao “colega”. Uma vez terminado este exercício, abriu-se o diálogo tendo por objetivo refletir sobre a situação e propor como poderia ser trabalhada. As falas foram se sucedendo e confluindo para uma posição que afirmava ser melhor continuar a aula como se nada tivesse acontecido e, no final, a professora chamar os dois alunos e conversar com eles. Esta posição tem como consequência retirar a questão do âmbito do coletivo e situá-la no espaço das relações interpessoais e do privado. Quando parecia que o grupo ia se afirmando nesta perspectiva, uma professora negra pediu a palavra e disse com serenidade e muita emoção: “não tem de calar não; é muito sofrido; dói muito; eu fui esta “neguinha” e digo, não dá para calar”. Fez-se um silêncio denso. O testemunho desta professora tocava na questão que considero central:
Porque reiteradamente preferimos silenciar o racismo presente na sociedade brasileira, nas nossas escolas e em cada um/a de nós? Porque preferimos “naturalizar” a discriminação racial ou considerar expressões presentes no nosso cotidiano como “meras brincadeiras”?

Considero que estamos chamados como educadores e educadoras, cidadãos e cidadãs, a “desnaturalizar” estas situações. “Não dá para calar”. A escola é um espaço privilegiado para esta “desnaturalização” de afirmações, atitudes e comportamentos e os professores e professoras agentes fundamentais neste processo.. Neste sentido, é importante problematizar questões como a discriminação e os estereótipos raciais presentes em textos de diferentes natureza - literários, didáticos e outros -, assim como em imagens e outras produções culturais e valorizar as diferenças constitutivas na nossa sociedade, não permitindo que se transformem em desigualdades. Trata-se de uma exigência da educação em Direitos Humanos e do fortalecimento da nossa ainda frágil democracia.

Rio de Janeiro, 20 de novembro de 2010


[1] Professora Titular do Departamento de Educação da PUC-Rio. Coordenadora do GECEC (Grupo de estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturas). Membro do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos.
[2] Ver: www.novamerica.org.br

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