terça-feira, 24 de dezembro de 2013

 

NELSON MANDELA – DA ÁFRICA DO SUL PARA O MUNDO, POR PIO PENNA FILHO

http://irel.unb.br/2013/12/06/nelson-mandela-da-africa-do-sul-para-o-mundo-por-pio-penna-filho/

Nelson Mandela foi uma das personalidades mais importantes da história contemporânea, aliás, pela sua conduta de vida e pela sua conduta política, um líder “histórico”, atemporal, daqueles poucos que entram para a História para nunca mais serem esquecidos. Carismático, Mandela atuou com uma convicção ímpar na luta contra o regime racista do apartheid na África do Sul, mesmo sabendo o quão difícil seria a vitória contra a intransigência racial de parte dos brancos sul-africanos. A história da sua luta se confunde com a história recente do seu próprio país e ganha uma dimensão ainda maior e transcendente quando consideramos o sério problema do racismo, infelizmente uma realidade universal.
apartheid foi um odioso sistema criado por brancos da África do Sul para se manterem no poder e no controle da vida política, econômica e social de um dos mais prósperos países africanos. Tudo começou no final dos anos 1940, quando os ventos da descolonização começavam a soprar da Ásia para a África e a Organização das Nações Unidas colocava em evidência valores como os dos direitos humanos, o direito a autodeterminação dos povos e a igualdade entre os homens, ou seja, assumia uma perspectiva crítica contra a discriminação racial, um dos pilares que legitimavam o colonialismo europeu.
Temerosos de perder o controle do processo político sul-africano, os brancos, congregados principalmente em torno do Partido Nacional, começaram a edificar um conjunto de leis discriminatórias que ficaram conhecidas como o sistema do apartheid, isto é, de separação, segregação, que tanto sofrimento e dor causou para a maior parte da população do país.
Nesse sistema absolutamente injusto, a maioria da população – os negros – não podiam viver nas mesmas cidades que os brancos, não podiam estudar nas mesmas escolas, não podiam frequentar as mesmas praias, não podiam namorar, casar e nem ter nenhum tipo de contato íntimo com os brancos, e vice-versa. Aliás, não só os negros. Os racistas sul-africanos dividiram a sociedade em brancos, negros, asiáticos e mestiços. Cada um recebia uma identificação e isso limitava toda a sua vida. Existiam cidades – ou bairros – destinados a cada grupo. É claro que esses locais eram sempre o mais afastado possível das cidades onde viviam os brancos e lhes faltava de tudo: acesso a saúde, escolas, água encanada, pavimentação, empregos, enfim, condições dignas de vida.
Foi contra esse estado de coisas que Mandela e muitos outros ativistas lutaram. Filiado ao Congresso Nacional Africano (CNA), Mandela se formou em Direito e rapidamente começou a se destacar como um dos mais importantes quadros do CNA. No início dos anos 1960, quando o regime racista ampliou a repressão contra os negros e vetou qualquer tipo de negociação política, Mandela pregou a luta armada como uma forma legítima de combater as injustiças sociais – e raciais – no seu país. Ou seja, embora preferisse a negociação política, Mandela não se furtou a ações mais radicais e firmes quando o regime fechou todas as outras possibilidades, assumindo riscos e responsabilidades que mais tarde o levariam à prisão.
Assim, por conta do seu engajamento político foi preso e condenado a prisão perpétua. Amargou 27 anos detido em Robben Island, uma prisão localizada numa ilha próxima à Cidade do Cabo. Mas mesmo todo o sofrimento da prisão não enfraqueceu a sua convicção inquebrantável de que uma África do Sul diferente era possível, uma nação que congregasse a todos, sem discriminação.
Por um desses lances de sorte, ou do destino, Mandela estava vivo quando o regime do apartheid desmoronava perante uma oposição vigorosa e violenta que tomava as ruas das principais cidades sul-africanas no final da década de 1980. Digo isso porque foi o seu incontestável carisma e sua autoridade moral que possibilitaram uma saída política para a crise sul-africana. Sem ele, talvez não fosse possível a realização de uma transição política relativamente pacífica num país profundamente marcado pela desigualdade e pelo ódio racial.
Mandela era um dos pouquíssimos negros que os brancos respeitavam. Ele foi o artífice de uma obra de engenharia política poucas vezes experimentada com sucesso em situações como a do desmantelamento do apartheid na África do Sul. Sua vida, pautada pela integridade moral e pela convicção política baseada na justiça social, é um exemplo para toda a humanidade.
Mandela foi um líder em todos os sentidos. Desde a juventude começou a se inquietar com as desigualdades e injustiças vivenciadas pela maior parte da população sul-africana, especialmente pelos negros. Logo adquiriu consciência política e começou a militar nas hostes do Congresso Nacional Africano, se dedicando com afinco e se preparando com uma  disciplina incomum para a luta que, todos sabiam, seria longa e árdua. Sua vida foi dedicada à luta contra o apartheid e por uma sociedade mais justa, com uma coerência política rara de se encontrar. Não se iludiu com o poder e nem tampouco tirou vantagens pessoais com a ascensão à presidência tendo, inclusive, demonstrado o seu compromisso com a democracia ao não se candidatar à reeleição, uma vez que acreditava ser importante a renovação política, dando vez a gerações mais novas.
A trajetória de vida de Nelson Mandela o levou da condição de militante contra o apartheid na África do Sul para a de um líder de reconhecimento mundial. Ao final, Mandela se tornou uma espécie de patrimônio da humanidade, um raríssimo líder com uma estatura moral invejável e encontrada apenas de tempos em tempos. Por tudo isso, não apenas os sul-africanos perdem o seu líder máximo, mas a humanidade como um todo fica órfã com a perda de um ser humano que serviu e servirá de exemplo para muitas gerações. Mandela merece descansar em paz!
Pio Penna Filho é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e diretor-geral do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais – IBRI (piopenna@gmail.com).

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

 

Altamiro Borges: A covarde violação dos direitos humanos

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A covarde violação dos direitos humanos

Por Leonardo Boff, no sítio da Adital:


Vivemos num mundo no qual os direitos humanos são violados, praticamente em todos os níveis, familiar, local, nacional e planetário.

O Relatório Anual da Anistia Internacional de 2013 com referência a 2012 cobrindo 159 países faz exatamente esta dolorosa constatação. Ao invés de avançarmos no respeito à dignidade humana e aos direitos das pessoas, dos povos e dos ecossistemas estamos regredindo a níveis de barbárie. As violações não conhecem fronteiras e as formas desta agressão se sofisticam cada vez mais.

A forma mais covarde é a ação dos "drones”, aviões não pilotados que a partir de alguma base do Texas, dirigidos por um jovem militar diante de uma telinha de televisão, como se estivesse jogando, consegue identificar um grupo de afegãos celebrando um casamento e dentro do qual, presumivelmente deverá haver algum guerrilheiro da Al Qaeda. Basta esta suposição para com um pequeno clique lançar uma bomba que aniquila todo o grupo, com muitas mães e crianças inocentes.

É a forma perversa da guerra preventiva, inaugurada por Bush e criminosamente levada avante pelo Presidente Obama que não cumpriu as promessas de campanha com referência aos direitos humanos, seja ao fechamento de Guantánamo, seja à supressão do "Ato Patriótico”(antipatriótico) pelo qual qualquer pessoa dentro dos USA pode ser detida por suspeita de terrorismo, sem necessidade de avisar a família. Isso significa sequestro ilegal que nós na América Latina conhecemos de sobejo. Verifica-se em termos econômicos e também de direitos humanos uma verdadeira latino-americanização dos USA no estilo dos nossos piores momentos da época de chumbo das ditaduras militares. Hoje, consoante o Relatório da Anistia Internacional, o país que mais viola direitos de pessoas e de povos são os Estados Unidos.

Com a maior indiferença, qual imperador romano absoluto, Obama nega-se a dar qualquer justificativa suficiente sobre a espionagem mundial que seu Governo faz a pretexto da segurança nacional, cobrindo áreas que vão de trocas de e-mails amorosos entre dois apaixonados até dos negócios sigilosos e bilionários da Petrobrás, violando o direito à privacidade das pessoas e à soberania de todo um país. A segurança anula a validade dos direitos irrenunciáveis.

O Continente que mais violações sofre é a África. É o Continente esquecido e vandalizado. Terras são compradas (land grabbing) por grandes corporações e pela China para nelas produzirem alimentos para suas populações. É uma neocolonização mais perversa que a anterior.

Os milhares e milhares de refugiados e imigrantes por razões de fome e de erosão de suas terras são os mais vulneráveis. Constituem uma subclasse de pessoas, rejeitadas por quase todos os países, "numa globalização da insensibilidade”, como a chamou o Papa Francisco. Dramática, diz o Relatório da Anistia Internacional, é a situação das mulheres. Constituem mais da metade da humanidade, muitíssimas delas sujeitas a violências de todo tipo e em várias partes da África e da Ásia ainda obrigadas à mutilação genital.

A situação de nosso país é preocupante dado o nível de violência que campeia em todas as partes. Diria, não há violência: estamos montados sobre estruturas de violência sistêmica que pesa sobre mais da metade da população afrodescendente, sobre os indígenas que lutam por preservar suas terras contra a voracidade impune do agronegócio, sobre os pobres em geral e sobre os LGBT, discriminados e até mortos. Porque nunca fizemos uma reforma agrária, nem política, nem tributária assistimos nossas cidades se cercarem de centenas e centenas de "comunidades pobres”(favelas) onde os direitos à saúde, educação, à infraestrutura e à segurança são deficitariamente garantidos. A desigualdade, outro nome para a injustiça social, provoca as principais violações.

O fundamento último do cultivo dos direitos humanos reside na dignidade de cada pessoa humana e no respeito que lhe é devido. Dignidade significa que ela é portadora de espírito e de liberdade que lhe permite moldar sua própria vida. O respeito é o reconhecimento de que cada ser humano possui um valor intrínseco, é um fim em si mesmo e jamais meio para qualquer outra coisa. Diante de cada ser humano, por anônimo que seja, todo poder encontra o seu limite, também o Estado.

O fato é que vivemos num tipo de sociedade mundial que colocou a economia como seu eixo estruturador. A razão é só utilitarista e tudo, até a pessoa humana, como o denuncia o Papa Francisco é feita "um bem de consumo que uma vez usado pode ser jogado fora”. Numa sociedade assim não há lugar para direitos, apenas para interesses. Até o direito sagrado à comida e à bebida só é garantido para quem puder pagar. Caso contrário, estará ao pé da mesa, junto aos cães esperando alguma migalha que caia da mesa farta dos ‘epulões’.

Neste sistema econômico, político e comercial se assentam as causas principais, não exclusivas, que levam permanentemente à violação da dignidade humana. O sistema vigente não ama as pessoas, apenas sua capacidade de produzir e de consumir. De resto, são apenas resto, óleo gasto na produção.

A tarefa além de humanitária e ética é principalmente política: como transformar este tipo de sociedade malvada numa sociedade onde os humanos possam se tratar humanamente e gozar de direitos básicos. Caso contrário a violência é a norma e a civilização se degrada em barbárie.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

 

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS: INTERDISCIPLINARIDADE E TRANSVERSALIDADE.

http://kilombagem.org/educacao-para-as-relacoes-etnico-raciais-interdisciplinaridade-e-transversalidade/


Por Leila Maria de Oliveira  – Mestre em Educação: Currículo pelo Programa de Pós Graduação da PUC-SP; professora de educação física; e integrante do Grupo KILOMBAGEM.
Texto apresentado como conclusão de Curso Educação, Relações Raciais e Direitos Humanos, promovido pela Ação Educativa.
O presente artigo tem como objetivo provocar uma breve reflexão sobre a importância de trasnversalizar a temática da educação para as relações étnico raciais nos currículos da educação básica brasileira.
A temática Educação para as Relações Raciais, ganha escopo depois da promulgação da Lei 10.639/03, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, incluindo no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”; além disso, seu conteúdo altera a LDBEN, acrescida dos arts. 26-A e 79-B, e avança com a elaboração do Parecer CNE/CP nº 03/04.

O Parecer CNE/CP nº 03/04, propõe e define as diretrizes que incluem, nos currículos das instituições de ensino, que atuam nos variados níveis e modalidades da educação brasileira, conteúdos e atividades curriculares relativos à educação das relações étnico-raciais. (OLIVEIRA, 2012)
A expressão Educação para as Relações Raciais, aparece no texto do Parecer CNE/CP nº 03/04, destacando a importante função da escola em criar pedagogias antirracistas, apontando a necessidade de os professores estarem qualificados para
[...] o ensino das diferentes áreas de conhecimentos e, além disso, sensíveis e capazes de direcionar positivamente as relações entre pessoas de diferente pertencimento étnico-racial, no sentido do respeito e da correção de posturas, atitudes, palavras preconceituosas. Daí a necessidade de se insistir e investir para que os professores, além de sólida formação na área específica de atuação, recebam formação que os capacite não só a compreender a importância das questões relacionadas à diversidade étnico-racial, mas a lidar positivamente com elas e, sobretudo criar estratégias pedagógicas que possam auxiliar a reeducá-las, para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos e, além disso, sensíveis e capazes de direcionar positivamente as relações entre pessoas de diferente pertencimento étnico-racial, no sentido do respeito e da correção de posturas, atitudes, palavras preconceituosas. Daí a necessidade de se insistir e investir para que os professores, além de sólida formação na área específica de atuação, recebam formação que os capacite não só a compreender a importância das questões relacionadas à diversidade étnicoracial, mas a lidar positivamente com elas e, sobretudo criar estratégias pedagógicas que possam auxiliar a reeducá-las. (BRASIL, 2004, p. 17).
O texto ressalta aspectos importantes, como a necessidade de investimento na formação inicial da área especifica dos professores, como também o incentivo na continuidade da formação para tratar a temática educação para as relações étnico raciais no cotidiano escolar.
O documento fomenta a necessidade de trabalhar a diversidade, não se tratando de substituir uma cultura determinante de raiz europeia por uma de matriz Africana, o que se pretende é valorizar e expandir o “foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.” (BRASIL, 2004, p. 17).
Como bem cita Silva (2005, p. 161), “[...] a Africanidade Brasileira abrange diferentes áreas, não precisam, em termos de programas de ensino, constituir-se numa única disciplina, pois podem estar presentes, em conteúdos e metodologias, nas diferentes disciplinas constitutivas do currículo escolar”.
A abordagem de conteúdos e metodologias que valorizem as relações étnico – raciais, permite e estimula o trabalho conjunto entre dois ou mais campos distintos, em busca de um trabalho interdisciplinar. Para Fazenda (2002, p. 64b), “a atitude interdisciplinar está contida nas pessoas que pensam o projeto educativo.”
A educação interdisciplinar não elimina as disciplinas, ao contrario reorganiza para torná-las comunicativas entre si.  As DCNERER não orienta a criação de uma disciplina nomeada Educação para as Relações Étnico Raciais, porem enfatiza a importância da temática ser trabalhada no âmbito de todo o currículo.
A proposta interdisciplinar estabelece ligações de complementaridade, convergência, interconexões e passagens entre os conhecimentos (Brasil 1999). Por isso é importante reorganizar o currículo, elaborando estratégias para contemplar conteúdos, que enaltecem o processo de ensino aprendizagem e de inserção social.
A sociedade brasileira é constituída pela diversidade, e se o que se busca é respeitar o educando, não se devem segregar culturas, já que as diferenças é tão importante na constituição do sujeito.
Alguns temas, que correspondem a questões presentes na vida cotidiana como orientação sexual e meio ambiente, foram integrados no currículo por meio da transversalidade. Pretende-se que alguns temas integrem as disciplinas convencionais, isso significa que devem ser trabalhados em disciplinas já existentes, relacionando-as às questões da atualidade e que se tornem eixos orientadores no convívio escolar. (MENEZES, 2002)
Ainda que o MEC, já pré-estabeleceu os temas transversal, ressalta a inclusão de outros temas relevantes, e ainda adverte aos professores a mobilizar conteúdos que reflitam nas questões sociais.
Assim, segundo orientação dos PCNs, não se trata de que os professores das diferentes áreas devam “parar” sua programação para trabalhar os temas, mas sim de que explicitem as relações entre ambos e as incluam como conteúdos de sua área, articulando a finalidade do estudo escolar com as questões sociais, possibilitando aos alunos o uso dos conhecimentos escolares em sua vida extra-escolar. Não se trata, portanto, de trabalhá-los paralelamente, mas de trazer para os conteúdos e para a metodologia da área a perspectiva dos temas. Segundo o MEC, caberá aos professores mobilizar tais conteúdos em torno de temáticas escolhidas, de forma que as diversas áreas não representem pontos isolados, mas digam respeito aos diversos aspectos que compõem o exercício da cidadania. (MENEZES, 2002)
O exercício de transversalidade não é somente tarefa do professor que trabalha diretamente com o educando, mas também da gestão que propõe e acompanha o projeto político pedagógico da unidade escolar.
O conteúdo sobre as relações étnico raciais merece uma atenção especial, devido a forma em que foi constituída a sociedade brasileira e as formas de manifestação do racismo. Transversalizar a temática em questão, possibilita a compreensão e a construção da realidade social, mais que isso valoriza a diversidade e integra os então “diferentes”, auto repeitando e respeitando ao outro.
 
Algumas considerações
A intencionalidade deste texto é provocar uma reflexão sobre a Lei nº 10.639/03, efetivada nas DCNERERs, para deixar de ser uma tarefa somente do Movimento Negro, desconsiderando ser uma alternativa, e que seja incorporada no currículo como neutra, assim como outros conteúdos obrigatórios do currículo.
A proposta de transversalidade pode acarretar algumas discussões do ponto de vista conceitual com a concepção de interdisciplinaridade. No entanto as duas apontam para o enredamento do real, e sua relação encadeada pode contribuir na elaboração de projetos onde o resultado esteja voltado para a o dia a dia, para a mudança de atitudes e práticas de todos os envolvidos.
Outro aspecto relevante é que se assume a temática das relações étnico raciais como um trabalho a perpassar todas as disciplinas seja de maneira transversal e ou interdisciplinar, o foco deixa de ser a temática e redirecionando toda atenção no processo de ensino – aprendizagem do aluno (ser social culturalmente construído).
Referências Bibliográficas
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ministério da Educação.Brasília,1999.
______. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.
______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais. Brasília: MEC, 2004.
FAZENDA, I. C. A. (Org.). Dicionário em construção: interdisciplinaridade. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002.
MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos.”Temas transversais” (verbete). Dicionário Interativo da Educação Brasileira – EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 2002, http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/dicionario.asp?id=60, visitado em 18/12/2012.
OLIVEIRA, L. M. Políticas Públicas do combate ao racismo na proposta curricular da educação física na rede pública estadual de ensino na cidade de Santo André. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.
SILVA, P. B. G. Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. In: MUNANGA, K. (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, 2005. p. 155-172.


Leila Maria

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Graduada em Educação Física pela ESCUELA INTERNACIONAL DE EDUCACION FISICA Y DEPORTE - CUBA (2008); Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde pesquisou sobre as políticas públicas curriculares e reformas educacionais, com ênfase na implementação da Lei 10.639/03, que altera a LDB 9.394/96 no currículo da educação física. Tem experiência na área de educação, com ênfase em Educação Física.
Leila Maria já escreveu 10 posts.


domingo, 10 de novembro de 2013

 

Projeto institui cotas raciais no serviço público de Santa Catarina,

Projeto de Lei nº


Fica assegurado aos negros e aos indígenas percentuais das vagas oferecidas nos concursos públicos efetuados pela administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado de Santa Catarina, para provimento de cargos efetivos.


                                     Art. 1º Fica assegurado aos negros e aos indígenas,  no mínimo,  20%  das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos da administração pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes e Órgãos Públicos do Estado de Santa Catarina.


§ 1º A fixação dos percentuais referidos no “caput” incidirá sobre o total de vagas disponibilizadas no edital de abertura do concurso público e se efetivará no processo de nomeação.


§ 2º Preenchidas as vagas reservadas no edital de abertura, caso a administração ofereça novas vagas durante a vigência do concurso, deverá ser respeitado o percentual calculado na forma desta Lei.

§ 3º Quando o número de vagas reservadas aos negros e aos indígenas resultar em fração, arredondar-se-á para o número inteiro imediatamente superior, em caso de fração igual ou maior a 0,5 (zero vírgula cinco), ou para o número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (zero vírgula cinco).

§ 4º A observância do percentual de vagas reservadas aos negros e aos indígenas dar-se-á durante todo o período de validade do concurso e aplicar-se-á a todos os cargos oferecidos. Deve-se aplicar as mesmas regras nas chamadas para admissão dos candidatos que ficarem no cadastro de reserva, havendo alternância na chamada para admissão dos classificados pelo concurso tradicional e aqueles aprovados pelo concurso que estabelece a reserva de vagas.

Art. 2° - O acesso dos candidatos à reserva de vagas obedecerá o pressuposto do procedimento único de seleção.

Art. 3° No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput do artigo 1º, aquelas remanescentes deverão ser completadas por candidatos do concurso tradicional na respectiva ordem de classificação.

Art. 4° - Para efeitos desta Lei Complementar, considerar-se-á negros e indígenas aqueles que assim se autodeclararem e que, pelo fenótipo, são assim vistos e reconhecidos como tal pela sociedade.

Parágrafo Primeiro - As informações fornecidas pelos candidatos são de sua inteira responsabilidade e ficarão registradas em suas fichas de inscrição do concurso público.

Parágrafo Segundo: A poder discricionário, a fim de evitar possíveis fraudes, poderá a Administração Pública que deflagrou o certame, prever no edital, mecanismos de controle e apresentação de prova da condição dos candidatos que são negros e indígenas.

Art. 5º - Detectada a falsidade na declaração a que se refere o artigo anterior, sujeitar-se-á o infrator as penas da lei e ainda:

I - se candidato, a anulação da inscrição no concurso público e de todos os atos daí decorrentes.

II - se já nomeado no cargo efetivo para o qual concorreu na reserva de vagas aludidas no art. 1°, utilizando-se da declaração inverídica, à pena de anulação da nomeação;

III - se já empossado e/ou em efetivo exercício no cargo efetivo para o qual concorreu na reserva de vagas aludidas no art. 1°, utilizando-se da declaração inverídica, à pena de demissão;

Parágrafo único - Em qualquer hipótese, ser-lhe-á assegurada ampla defesa.

Art. 6° - As disposições desta Lei não se aplicam aqueles concursos públicos cujos editais de abertura foram publicados anteriormente a sua vigência.

Art. 7º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.


Sala de Sessões,


Bancada do Partido dos Trabalhadores
      Dep. Ana Paula Lima - Líder




JUSTIFICATIVA

   Há dez anos algumas universidades públicas estaduais e federais passaram implementar políticas públicas de ação afirmativas, por meio do sistema de cotas, para ingresso de estudantes negros e indígenas no ensino superior brasileiro. Desta forma, o Brasil começou a dar os primeiros passos daquela que é uma longa caminhada para a redução da desigualdade racial entre brancos, negros e indígenas, que impacta negativamente, há séculos, esses dois últimos grupos étnico-raciais, em vários aspectos da suas vidas, especialmente, no campo educacional, cultural e profissional.

O sistema de cotas está alterando a composição racial das universidades públicas brasileiras. Essas historicamente foram e têm sido um locus reservado para os filhos das classes médias e ricas do país, em sua maioria absoluta composta por cidadãos brancos, mas que em função desse sistema está começando a ser um espaço mais diversificado, onde os filhos de trabalhadores estão começando e devem frequentá-lo. Políticas públicas implementadas por meio do sistema de cotas, que reserva percentuais de vagas aos negros e indígenas, mexem com a estrutura social e com os privilégios arraigados na sociedade brasileira, razões pelas quais esse sistema foi duramente criticado pelos setores mais privilegiados da nossa sociedade.

Em decisão unânime e histórica, no dia 26 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF), considerou o sistema de cotas raciais não somente legítimo, mas legal, ou seja, constitucional. Conforme a ministra Carmen Lúcia, ministra do STF e uma das autoras especialistas em políticas de ação afirmativa: "Verifica-se, na Constituição de 1988, que os verbos utilizados na expressão normativa — construir, erradicar, reduzir, promover — são verbos de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. (...) Somente a ação afirmativa, vale dizer, a atuação transformadora, igualadora pelo e segundo o direito, possibilita a verdade do princípio da igualdade que a Constituição Federal assegura como direito fundamental de todos"[1].

O também ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, em seu voto que aprovou o sistema de cotas, não somente ratificou que as políticas de ação afirmativa são constitucionais, como deu exemplos concretos das suas técnicas de implementação abrigadas na Constituição brasileira. Conforme o ministro Marco Aurélio de Mello, a Constituição brasileira

(…) agasalha amostragem de ação afirmativa, por exemplo, no artigo 7º, inciso XX, ao cogitar da proteção de mercado quanto à mulher e ao direcionar à introdução de incentivos; no artigo 37, inciso VIII, ao versar sobre a reserva de vaga  – e, portanto, a existência de quotas  –, nos concursos públicos, para os deficientes; no artigo 170, ao dispor sobre as empresas de pequeno porte, prevendo que devem ter tratamento preferencial; no artigo 227, ao fazê-lo também em relação à criança  e ao adolescente (Mello, 2012: 08)[2].

 Ação afirmativa essa que não somente é reconhecida pela STF, mas que é proposta e regulamentada pela Lei 12.228, de 20 de julho de 2010 (Lei nº12.288, de 20 de julho de 2010), o Estatuto da Igualdade Racial, que no seu artigo quarto, e incisos, estabelece que:

“Art. 4o  A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:
(...)
II - adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;
(...)
VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros.
Parágrafo único.  Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País.”

Estatuto esse que foi debatido por dez anos no Congresso Nacional, chegando-se ao consenso de que as políticas de ações afirmativas devem ser uma obrigação do Estado brasileiro. Obrigação essa que já tinha sido aceita e ratificada pelo nosso país, quando foi um dos principais protagonistas e signatários da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, África do Sul, no ano de 2001. Reconhecendo a necessidade urgente de se traduzir os objetivos da Declaração em um Programa de Ação prático e realizável, os participantes da Conferência, entre eles o Brasil, assinaram o Programa de Ação que:

99. Reconhece que o combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata é responsabilidade primordial dos Estados. Portanto, incentiva os Estados a desenvolverem e elaborarem planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, equidade, justiça social, igualdade de oportunidades e participação para todos. Através, dentre outras coisas, de ações e de estratégias afirmativas ou positivas; estes planos devem visar a criação de condições necessárias para a participação efetiva de todos nas tomadas de decisão e o exercício dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais em todas as esferas da vida com base na não-discriminação. A Conferência Mundial incentiva os Estados que desenvolverem e elaborarem os planos de ação, para que estabeleçam e reforcem o diálogo com organizações não-governamentais para que elas sejam intimamente envolvidas na formulação, implementação e avaliação de políticas e de programas;
100. Insta os Estados a estabelecerem, com base em informações estatísticas, programas nacionais, inclusive programas de ações afirmativas ou medidas de ação positivas, para promoverem o acesso de grupos de indivíduos que são ou podem vir a ser vítimas de discriminação racial nos serviços básicos, incluindo, educação fundamental, atenção primária à saúde e moradia adequada[3].

Portanto, há não somente leis nacionais, tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e que têm força de lei, assim como a decisão supracitada do STF, que orientam e, alguns casos, determinam a implementação de ações afirmativas para grupos étnico-raciais discriminados, como indígenas e negros.

No que diz respeito ao mercado de trabalho, precisamos transformá-lo, uma vez que é um dos setores onde o preconceito e a discriminação raciais contra os trabalhadores negros e indígenas mais se manifestam. Segundo o Instituto de Pesquisa Aplicadas (IPEA), mesmo que os negros tenham  a mesma escolaridade que os brancos, especialmente à medida que se avança nos estratos sociais superiores, as desigualdades salariais entre esses dois grupos raciais permanecem e em alguns casos até aumentam, em função do racismo. Por exemplo, o rendimento médio dos homens negros é 78,6% do total do rendimento dos homens brancos. Não bastasse isso, a taxa de desemprego das mulheres negras é de 12,6 %, mas a das de mulheres brancas é 9,3%.

Deve-se lembrar que ações para redução das desigualdades raciais no mercado de trabalho são diretrizes do já citado Estatuto da Igualdade Racial, que no seu Capítulo V, do Trabalho, artigo 39, afirma que: “O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas”.

Pelas razões expostas, faz-se necessário a implementação de reserva de vagas para negros, 20%, e indígenas, 10%, nos concursos públicos para provimento de cargos da administração pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes e Órgãos Públicos do Estado de Santa Catarina.

Cabe relembrar que o Estado de Santa Catarina é o único da Região Sul que ainda não adotou nenhuma medida de ação afirmativa para rever a desigualdade do mercado de trabalho e promover a inclusão dos negros no serviço público estadual. O Paraná foi um dos estados pioneiros na implantação deste tipo política pública, por meio da Lei 14.274, de 24 de dezembro de 2003. Desde então, 10% das vagas em concursos públicos desse estado têm sido reservadas para a população negra. Em 19 de dezembro de 2012, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou por unanimidade a Lei 14.147, que reserva  de vagas nos concursos públicos para negros, em percentual equivalente a sua representação na composição populacional do Rio Grande Sul, apurada pelo censo realizado pelo IBGE.

Por último, mas não menos importante, o parecer do Procurador-Geral do Rio Grande do Sul, Carlos Henrique Kaipper, demonstra que as diferenças de oportunidades no mercado de trabalho são fundadas em critérios de discriminação racial. Segundo ele: “São inúmeros os estudos que apontam que afrodescendentes são preteridos nas contratações e, quando contratados, de regra com menor remuneração em relação a não negros, ainda que apresentem melhor qualificação. A ocupação de vagas de trabalho, seja no serviço público, seja na iniciativa privada, está longe de traduzir a composição étnico-racial do país, o que não é diferente no nosso Estado”[4].

Concluindo, os estados do Paraná (PR) e do Rio Grande do Sul (RS) estão trabalhando para amenizar as desigualdades raciais no mercado de trabalho, especialmente no serviço público, com vistas a se ter uma representação da composição étnico-racial mais realista dos respectivos estados. Santa Catarina não pode ficar alheia às mudanças e avanços sociais que vêm ocorrendo na Região Sul, menos ainda a essa justa demanda social. Mas o nosso estado deve avançar mais, especialmente aprovando esta reserva de vagas para negros e indígenas.  Este é o momento mais propício de se buscar equalização das desigualdades entre as populações brancas, amarelas, negras e indígenas, e de se promover um serviço público que expresse a diversidade étnico-racial dos catarinenses, mas também seja igualitário racialmente.

Bancada do Partido dos Trabalhadores
Dep. Ana Paula Lima - Líder


[1]              Extraído de: Igualdade racial no mercado de trabalho  http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=18182&Itemid=75 (grifo nosso).
[3]              IIICMCRDRXIC apud MOURA, Carlos Alves; BARRETO, Jônatas Nunes. A Fundação Cultural Palmares na III conferência mundial de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata. Brasília: Fundação Cultural Palmares (FCP), 2002.

[4]              Extraído de Cotas raciais no serviço público http://www.rs.gov.br/noticias/1/103126/Cotas-raciais-no-servico-publico,-por-Carlos-Henrique-Kaipper/4/269//

 

Polícia brasileira mata cinco por dia e é uma das mais letais do mundo


Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que somente no ano passado quase 2 mil pessoas foram mortas em confrontos com policiais.
A reportagem é de Wanderley Preite Sobrinho e publicada pelo portal Ig, 05-11-2013.

A polícia brasileira é uma das mais violentas do mundo, revela o 7º anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta terça-feira em São Paulo. De acordo com o estudo, pelo menos cinco pessoas são vítimas da intervenção policial no Brasil todos os dias, manchando a imagem das corporações.
Em 2012, 1.890 pessoas foram mortas em confronto com policiais em serviço, seguido pelo México, com 1.652 assassinatos. África do Sul (706),Venezuela (704) Estados Unidos (410) e República Dominicana (268) aparecem em seguida na comparação entre países do continente americano.
“Esse índice é superior ao do México, que vive uma crise na fronteira com os Estados Unidos”, compara o sociólogo Renato Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Também por essa razão, a popularidade da polícia nunca esteve tão baixa. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) informa que 70% da população não confia nas polícias, mais popular apenas do que os partidos políticos, rejeitados por 95% dos brasileiros. Nos Estados Unidos, 88% da população confia em seus policiais, enquanto na Inglaterra esse índice é de 82%.
“Esse resultado está ligado não só aos assassinatos, mas à ineficiência nas investigações e mau atendimento recebido pela população”, avalia o Tenente Coronel da PM, Adilson Paes de Souza.
Por outro lado, os agentes também estão em perigo. Considerando as taxas de homicídio da população e de policiais, o risco de um agente morrer assassinado no Brasil é três vezes maior. “A verdade é que não estamos protegendo nem a população nem os policiais”, acredita Renato Lima.

 

RACISMO: O crime perfeito

http://revistaforum.com.br/blog/2012/02/nosso-racismo-e-um-crime-perfeito/

Revista Fórum

09/02/2012 10:04 am
Nosso racismo é um crime perfeito
O antropólogo Kabengele Munanga fala sobre o mito da democracia racial brasileira, a polêmica com Demétrio Magnoli e o papel da mídia e da educação no combate ao preconceito no país
Por Camila Souza Ramos e Glauco Faria
Fórum – O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, é um país bem diferente. O senhor sentiu, quando veio pra cá, a questão racial? Como foi essa mudança para o senhor?
Kabengele – Essas coisas não são tão abertas como a gente pensa. Cheguei aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado. Não se depara com o preconceito à primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas vêm pouco a pouco, quando se começa a descobrir que você entra em alguns lugares e percebe que é único, que te olham e já sabem que não é daqui, que não é como “nossos negros”, é diferente. Poderia dizer que esse estranhamento é por ser estrangeiro, mas essa comparação na verdade é feita em relação aos negros da terra, que não entram em alguns lugares ou não entram de cabeça erguida.
Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e alguns de meus professores eram especialistas na questão racial. Foi através da academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia problemas no país. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, já era uma disciplina sobre a questão racial com meu orientador João Batista Borges Pereira. Depois, com o tempo, você vai entrar em algum lugar em que está sozinho e se pergunta: onde estão os outros? As pessoas olhavam mesmo, inclusive olhavam mais quando eu entrava com minha mulher e meus filhos. Porque é uma família inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho negro e um filho mestiço. Em todos os lugares em que a gente entrava, era motivo de curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre escondia. Entrávamos em lugares onde geralmente os negros não entram.
A partir daí você começa a buscar uma explicação para saber o porquê e se aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da discriminação racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do Otavio Ianni, do meu próprio orientador e de tantos outros que trabalharam com a questão. Mas o problema é que quando a pessoa é adulta sabe se defender, mas as crianças não. Tenho dois filhos que nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu caçula é brasileiro. Quantas vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a polícia?
Meus filhos estudaram em escola particular, Colégio Equipe, onde estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu não ia buscá-los na escola, e quando saíam para tomar ônibus e voltar para casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram os únicos a ser revistados. No entanto, a condição social era a mesma e estudavam no mesmo colégio. Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados pela polícia? Essa situação eu não posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído para não discutir e dizer que os documentos estão no porta-luvas, senão podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão… A geografia do seu corpo não indica isso.
Então, essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui também vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas. Fui com o tempo respondendo à questão, por meio da vivência, com o cotidiano e as coisas que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da população negra, e entendi que a democracia racial é um mito. Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira.
Revista Fórum – Quando você tem um sistema como o sul-africano ou um sistema de restrição de direitos como houve nos EUA, o inimigo está claro. No caso brasileiro é mais difícil combatê-lo…
Kabengele – Claro, é mais difícil. Porque você não identifica seu opressor. Nos EUA era mais fácil porque começava pelas leis. A primeira reivindicação: o fim das leis racistas. Depois, se luta para implementar políticas públicas que busquem a promoção da igualdade racial. Aqui é mais difícil, porque não tinha lei nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis pra proteger estão na nova Constituição que diz que o racismo é um crime inafiançável. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prática do racismo não era um crime, era uma contravenção. A população negra e indígena viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem para proteger.
Revista Fórum – Aqui no Brasil há mais dificuldade com relação ao sistema de cotas justamente por conta do mito da democracia racial?
Kabengele – Tem segmentos da população a favor e contra. Começaria pelos que estão contra as cotas, que apelam para a própria Constituição, afirmando que perante a lei somos todos iguais. Então não devemos tratar os cidadãos brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma inconstitucionalidade. Outro argumento contrário, que já foi demolido, é a ideia de que seria difícil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar pelas cotas por causa da mestiçagem. O Brasil é um país de mestiçagem, muitos brasileiros têm sangue europeu, além de sangue indígena e africano, então seria difícil saber quem é afro-descendente que poderia ser beneficiado pela cota. Esse argumento não resistiu. Por quê? Num país onde existe discriminação antinegro, a própria discriminação é a prova de que é possível identificar os negros. Senão não teria discriminação.
Em comparação com outros países do mundo, o Brasil é um país que tem um índice de mestiçamento muito mais alto. Mas isso não pode impedir uma política, porque basta a autodeclaração. Basta um candidato declarar sua afro-descendência. Se tiver alguma dúvida, tem que averiguar. Nos casos-limite, o indivíduo se autodeclara afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o que aconteceu na UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou pelas cotas porque acharam que era mestiço, e o outro foi barrado porque acharam que era branco. Isso são erros humanos. Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente, não seria assim. Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas não é isso que vai impedir uma política pública que possa beneficiar uma grande parte da população brasileira.
Além do mais, o critério de cota no Brasil é diferente dos EUA. Nos EUA, começaram com um critério fixo e nato. Basta você nascer negro. No Brasil não. Se a gente analisar a história, com exceção da UnB, que tem suas razões, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critério das cotas, usaram o critério étnico-racial combinado com o critério econômico. O ponto de partida é a escola pública. Nos EUA não foi isso. Só que a imprensa não quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota é simplesmente racial. Não é. Isso é mentira, tem que ver como funciona em todas as universidades. É necessário fazer um certo controle, senão não adianta aplicar as cotas. No entanto, se mantém a ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos índices do Pnud, mostram que o abismo em matéria de educação entre negros e brancos é muito grande. Se a gente considerar isso então tem que ter uma política de mudança. É nesse sentido que se defende uma política de cotas.
O racismo é cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que estão contra cotas pensam como se o racismo não tivesse existido na sociedade, não estivesse criando vítimas. Se alguém comprovar que não tem mais racismo no Brasil, não devemos mais falar em cotas para negros. Deveríamos falar só de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, então não há como você tratar igualmente as pessoas que são vítimas de racismo e da questão econômica em relação àquelas que não sofrem esse tipo de preconceito. A própria pesquisa do IPEA mostra que se não mudar esse quadro, os negros vão levar muitos e muitos anos para chegar aonde estão os brancos em matéria de educação. Os que são contra cotas ainda dão o argumento de que qualquer política de diferença por parte do governo no Brasil seria uma política de reconhecimento das raças e isso seria um retrocesso, que teríamos conflitos, como os que aconteciam nos EUA.
(Foto TV Brasil)
Fórum – Que é o argumento do Demétrio Magnoli.
Kabengele – Isso é muito falso, porque já temos a experiência, alguns falam de mais de 70 universidades públicas, outros falam em 80. Já ouviu falar de conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais? Não existe. É claro que houve manifestações numa universidade ou outra, umas pichações, “negro, volta pra senzala”. Mas isso não se caracteriza como conflito racial. Isso é uma maneira de horrorizar a população, projetar conflitos que na realidade não vão existir.
Fórum – Agora o DEM entrou com uma ação no STF pedindo anulação das cotas. O que motiva um partido como o DEM, qual a conexão entre a ideologia de um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposição ao sistema de cotas? Qual é a raiz dessa resistência?
Kabengele – Tenho a impressão que as posições ideológicas não são explícitas, são implícitas. A questão das cotas é uma questão política. Tem pessoas no Brasil que ainda acreditam que não há racismo no país. E o argumento desse deputado do DEM é esse, de que não há racismo no Brasil, que a questão é simplesmente socioeconômica. É um ponto de vista refutável, porque nós temos provas de que há racismo no Brasil no cotidiano. O que essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil vive muito bem, não há problema com ele, que o problema é só com os pobres, que não podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma discriminação contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os brancos e pobres também são beneficiados pelas cotas, e eles negam esse argumento automaticamente, deixam isso de lado.
Fórum – Mas isso não é um cinismo de parte desses atores políticos, já que eles são contra o sistema de cotas, mas também são contra o Bolsa-Família ou qualquer tipo de política compensatória no campo socioeconômico?
Kabengele – É interessante, porque um país que tem problemas sociais do tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudança, de transformação da sociedade. Cada vez que se toca nas políticas concretas de mudança, vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou aqui no Brasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pública mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. “Ah, é só mudar a escola pública.” Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles, como autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pública e lutar pelas leis, bom salário para os educadores, laboratórios, segurança. Mas a coisa só fica no nível da retórica.
E tem esse argumento legalista, “porque a cota é uma inconstitucionalidade, porque não há racismo no Brasil”. Há juristas que dizem que a igualdade da qual fala a Constituição é uma igualdade formal, mas tem a igualdade material. É essa igualdade material que é visada pelas políticas de ação afirmativa. Não basta dizer que somos todos iguais. Isso é importante, mas você tem que dar os meios e isso se faz com as políticas públicas. Muitos disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelência universitária. Está comprovado que os alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou superior aos outros. Então a excelência não foi prejudicada. Aliás, é curioso falar de mérito como se nosso vestibular fosse exemplo de democracia e de mérito. Mérito significa simplesmente que você coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nível.
Quando as pessoas não são iguais, não se pode colocar no ponto de partida para concorrer igualmente. É como você pegar uma pessoa com um fusquinha e outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual o carro mais veloz. O aluno que vem da escola pública, da periferia, de péssima qualidade, e o aluno que vem de escola particular de boa qualidade, partindo do mesmo ponto, é claro que os que vêm de uma boa escola vão ter uma nota superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira nota 8, esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada muito longa. Essa nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8. Dando oportunidade ao aluno, ele não vai decepcionar.
Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas são aplicadas desde 2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas terminaram o curso universitário e quantos anos o Brasil levaria para formar o tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso são coisas concretas para as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demétrio Magnoli, ele me critica, mas não leu nada. Nem uma linha de meus livros. Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro não-negro e branco não-branco que pediu para eu fazer uma introdução, e desta introdução de três páginas ele tirou algumas frases e, a partir dessas frases, me acusa de ser um charlatão acadêmico, de professar o racismo científico abandonado há mais de um século e fazer parte de um projeto de racialização oficial do Brasil. Nunca leu nada do que eu escrevi.
A autora do livro é mestiça, psiquiatra e estuda a dificuldade que os mestiços entre branco e negro têm pra construir a sua identidade. Fiz a introdução mostrando que eles têm essa dificuldade justamente por causa de serem negros não-negros e brancos não-brancos. Isso prejudica o processo, mas no plano político, jurídico, eles não podem ficar ambivalentes. Eles têm que optar por uma identidade, têm que aceitar sua negritude, e não rejeitá-la. Com isso ele acha que eu estou professando a supressão dos mestiços no Brasil e que isso faz parte do projeto de racialização do brasileiro. Não tinha nada para me acusar, soube que estou defendendo as cotas, tirou três frases e fez a acusação dele no jornal.
Fórum – O senhor toca na questão do imaginário da democracia racial, mas as pessoas são formadas para aceitarem esse mito…
Kabengele – O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la.
Há negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando. Como também tem os brancos que introjetaram isso e acham mesmo que são superiores por natureza. Mas para você lutar contra essa ideia não bastam as leis, que são repressivas, só vão punir. Tem que educar também. A educação é um instrumento muito importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi educado para não assumir seus preconceitos. O Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros é o “preconceito de ter preconceito de ter preconceito”. O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda.
Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda na casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: “Não vou alugar minha casa para um negro”. No Brasil, vai dizer: “Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar”. Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa explícita.
Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: “você já discriminou alguém?”. A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar… Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: “você que é complexado, o problema está na sua cabeça”. Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.
Revista Fórum – O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saía com loiras. Houve uma reação grande e a continuação dos argumentos dele para se justificar vai ao encontro disso que o senhor está falando. Ele dizia que racista era quem acusava ele, e citava a questão do orgulho negro como algo de quem é racista.
Kabengele – Faz parte desse imaginário. O que está por trás dessa ilustração de King Kong, que ele compara a um jogador de futebol que vai casar com uma loira, é a ideia de alguém que ascende na vida e vai procurar sua loira. Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade.
Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades pra casar com um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não querem que os negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo. Estão praticando um preconceito que não respeita a vontade dessas mulheres nem essas pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse humorista faz uma ilustração disso, ou é uma provocação ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade.
Fórum – É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um argumento muito simplório: “por que eu posso chamar um gordo de baleia e um negro de macaco”, como se fosse a mesma coisa.
Kabengele – É interessante isso, porque tenho a impressão de que é um cara que não conhece a história e o orgulho negro tem uma história. São seres humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do processo de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. Se o humorista conhecesse isso, entenderia a história do orgulho negro. O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso, está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer.
Fórum – O senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e recentemente tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso de um jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as pessoas – jornalistas que comentaram, a diretoria gremista – argumentavam que no campo de futebol você pode falar qualquer coisa, e que se as pessoas fossem se importar com isso, não teria como ter jogo de futebol. Como você vê esse tipo de situação?
Kabengele – Isso é uma prova daquilo que falei, os brasileiros são educados para não assumir seus hábitos, seu racismo. Em outros países, não teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro… Já ouviu caso contrário, de negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol. Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido? Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma violência também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica é aceita a violência física é punida?
Fórum – Como o senhor vê hoje a aplicação da lei que determina a obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os professores, de um modo geral, estão preparados para lidar com a questão racial?
Kabengele – Essa lei já foi objeto de crítica das pessoas que acham que isso também seria uma racialização do Brasil. Pessoas que acham que, sendo a população brasileira uma população mestiça, não é preciso ensinar a cultura do negro, ensinar a história do negro ou da África. Temos uma única história, uma única cultura, que é uma cultura mestiça. Tem pessoas que vão nessa direção, pensam que isso é uma racialização da educação no Brasil.
Mas essa questão do ensino da diversidade na escola não é propriedade do Brasil. Todos os países do mundo lidam com a questão da diversidade, do ensino da diversidade na escola, até os que não foram colonizadores, os nórdicos, com a vinda dos imigrantes, estão tratando da questão da diversidade na escola.
O Brasil deveria tratar dessa questão com mais força, porque é um país que nasceu do encontro das culturas, das civilizações. Os europeus chegaram, a população indígena – dona da terra – os africanos, depois a última onda imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do cidadão. Ora, se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a história do negro, da África, das populações indígenas não fazia parte da educação do brasileiro.
Nosso modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto de vista da historiografia oficial, os portugueses chegaram na África, encontraram os africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil. Não foi isso que aconteceu. A história da escravidão é uma história da violência. Quando se fala de contribuições, nunca se fala da África. Se se introduzir a história do outro de uma maneira positiva, isso ajuda.
É por isso que a educação, a introdução da história dele no Brasil, faz parte desse processo de construção do orgulho negro. Ele tem que saber que foi trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho escravizado, para construir as bases da economia colonial brasileira. Além do mais, houve a resistência, o negro não era um João-Bobo que simplesmente aceitou, senão a gente não teria rebeliões das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que durou quase um século. São provas de resistência e de defesa da dignidade humana. São essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimônio histórico de todos os brasileiros. O branco e o negro têm que conhecer essa história porque é aí que vão poder respeitar os outros.
Voltando a sua pergunta, as dificuldades são de duas ordens. Em primeiro lugar, os educadores não têm formação para ensinar a diversidade. Estudaram em escolas de educação eurocêntrica, onde não se ensinava a história do negro, não estudaram história da África, como vão passar isso aos alunos? Além do mais, a África é um continente, com centenas de culturas e civilizações. São 54 países oficialmente. A primeira coisa é formar os educadores, orientar por onde começou a cultura negra no Brasil, por onde começa essa história. Depois dessa formação, com certo conteúdo, material didático de boa qualidade, que nada tem a ver com a historiografia oficial, o processo pode funcionar.
Fórum – Outra questão que se discute é sobre o negro nos espaços de poder. Não se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar contra isso?
Kabengele – O que é um país democrático? Um país democrático, no meu ponto de vista, é um país que reflete a sua diversidade na estrutura de poder. Nela, você vê mulheres ocupando cargos de responsabilidade, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, assim como no setor privado. E ainda os índios, que são os grandes discriminados pela sociedade. Isso seria um país democrático. O fato de você olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou quase não ver negros, não ver mulheres, não ver índios, isso significa que há alguma coisa que não foi feita nesse país. Como construção da democracia, a representatividade da diversidade não existe na estrutura de poder. Por quê?
Se você fizer um levantamento no campo jurídico, quantos desembargadores e juízes negros têm na sociedade brasileira? Se você for pras universidades públicas, quantos professores negros tem, começando por minha própria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa grande faculdade, que é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politécnica, tenho certeza de que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor. Desde que entrei no Departamento de Antropologia, não entrou outro. Daqui três anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um grande professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio do exterior e eu já estava aqui. Em toda a USP, não sou capaz de passar de dez pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas não chega a 50, exagerando. Se você for para as grandes universidades americanas, Harvard, Princeton, Standford, você vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. Lá eles são mais racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?
120 anos de abolição. Por que não houve uma certa mobilidade social para os negros chegarem lá? Há duas explicações: ou você diz que ele é geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicação racista, ou encontra explicação na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua mobilidade. E isso passa por questão de preconceito, de discriminação racial. Não há como explicar isso. Se você entender que os imigrantes japoneses chegaram, nós comemoramos 100 anos recentemente da sua vinda, eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos também ocupam um lugar na sociedade. Mas os negros já estão a 120 anos da abolição. Então tem uma explicação. Daí a necessidade de se mudar o quadro. Ou nós mantemos o quadro, porque se não mudamos estamos racializando o Brasil, ou a gente mantém a situação para mostrar que não somos racistas. Porque a explicação é essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando. Então vamos deixar as coisas do jeito que estão. Esse é o dilema da sociedade.
Revista Fórum – como o senhor vê o tratamento dado pela mídia à questão racial?
Kabengele – A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da democracia racial é um discurso também que é absorvido por alguns membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que também não são muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do ensino da história do negro na escola.
Houve, no mês passado, a II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve matérias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita não pautaram isso. O silêncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio. O silêncio é uma maneira de você matar a consciência de um povo. Porque se falar sobre isso abertamente, as pessoas vão buscar saber, se conscientizar, mas se ficar no silêncio a coisa morre por aí. Então acho que o silêncio da imprensa, no meu ponto de vista, passa por essa estratégia, é o não-dito.
Acabei de passar por uma experiência interessante. Saí da Conferência Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros que pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministério das Relações Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma reunião pequena de capoeiristas e fiz uma conferência sobre a cultura negra no Brasil. Saiu no El Pais, que é o jornal mais importante da Espanha, noticiou isso, uma coisa pequena. Uma conferência nacional deste tamanho aqui não se fala. É um contrassenso. O silêncio da imprensa não é um silêncio neutro, é um silêncio que indica uma certa orientação da questão racial. Tem que não dizer muita coisa e ficar calado. Amanhã não se fala mais, acabou.

Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum de agosto. Nas bancas.

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