Pepe Escobar. Quando o Ocidente ansiava por chegar à China. Dossier Sul, 17 de outubro de 2021.

 

 


Esqueça a barulheira incessante da Guerra Fria 2.0 contra a China. Esqueça aqueles simplórios dos think-tanks que projetam seus desejos sobre o perpétuo “fim da ascensão da China”.

Esqueça até mesmo algumas mentes sãs em Bruxelas – sim, elas existem – dizendo que a Europa não quer contenção da China; quer engajamento, o que significa negócios.

Vamos viajar no tempo para quase dois milênios atrás, quando o Império Romano estava fascinado pelas oportunidades de negócios oferecidas por aquelas terras “misteriosas” no Oriente.    

Após a queda de Roma e a metade ocidental do Império no século V, Constantinopla – a segunda Roma – que era de fato grega, se transformou na encarnação máxima dos únicos verdadeiros “romanos”.

No entanto, ao contrário dos gregos helenistas que seguiam Alexandre o Grande, que eram bem fascinados pela Ásia, os romanos desde o fim da República até o estabelecimento do Império foram impedidos de irem mais adiante, pois estavam sempre bloqueados pelos partos: nunca se esqueça da espetacular derrota romana em Carras em 53 AC.

Por mais de quatro séculos, de fato, as linhas limítrofes orientais do Império foram notavelmente estáveis, desde as montanhas do leste da Armênia até o curso do Eufrates e os desertos da Síria-Mesopotâmia.

Portanto, tínhamos de fato três limites naturais: a montanha, o rio e o deserto.

A estratégia global de Roma era não permitir que os Partos – e depois os Persas – dominassem totalmente a Armênia, alcançassem o Mar Negro e fossem além do Cáucaso para atingirem as planícies Russo-Ucranianas e avançassem para a Europa.

Os persas, entretanto, se limitaram a reforçar as fronteiras do Eufrates, que só foram quebradas muitos séculos depois, pelos turcos Seljuk no final do século 12 e pelos mongóis no início do século 13.

Esta é uma fratura absolutamente crucial na história da Eurásia – porque esta fronteira, mais tarde perpetuada entre os impérios otomano e persa, ainda hoje está viva e em pulsante, entre a Turquia e o Irã.

Ela explica, por exemplo, a atual alta tensão entre o Irã e o Azerbaijão, e continuará a ser explorada sem parar pelos atores que dividem e governam.

Seguindo os passos das caravanas

Algo extraordinário aconteceu no ano de 166: Comerciantes romanos chegaram à corte do imperador chinês Huan-ti, o 27º imperador da dinastia Han. Aprendemos da história da Dinastia Han posterior que um “enviado romano” – provavelmente enviado por ninguém menos que o imperador Marcus Aurelius – foi recebido por Huan-ti em Luoyang.  

Eles viajaram através do que os chineses no século 21 chamariam de Rota Marítima da Seda – do Oceano Índico para o Mar do Sul da China até o norte do Vietnã, depois por terra até Chang’an – o Xian de hoje.

Os romanos tinham comprado seda da Ásia desde o final do século I a.C., até a terra dos “Seres”, sobre a qual muitos estudiosos discordam: alguns afirmam que era a China, outros que era Caxemira.  

O comércio ao longo da Rota da Seda era de fato conduzido por uma série de intermediários: ninguém percorria todo o caminho de volta.

Produtos de luxo da indústria – seda, pérolas, pedras preciosas, pimenta – da China, Índia e Arábia entraram em contato com comerciantes romanos apenas em um dos lendários centros dos “corredores de comunicação” entre o Oriente e o Ocidente: Alexandria, Petra ou Palmyra. Em seguida, a carga seria embarcada nos portos do leste do Mediterrâneo até Roma.

O comércio de caravanas era controlado por nabateus, egípcios e sírios. Os comerciantes “romanos” mais eficientes eram de fato gregos do Mediterrâneo oriental. O acadêmico JN Robert mostrou como, desde Alexandre, o grego era uma espécie de língua universal – como o inglês hoje – de Roma às montanhas Pamir, do Egito aos reinos que nasceram fora do Império Persa.

E isso nos leva a um personagem literalmente inovador: Maes Titianus, um comerciante greco-macedônio que vivia em Antioquia, na Síria romana, durante o século I.

Mesmo antes daquele enviado de Marcus Aurelius à corte de Han, Maes Titianus conseguiu enviar uma caravana pesada para além da Ásia Central até a terra de Seres.

A viagem foi épica – e durou mais de um ano. Eles começaram na Síria, cruzaram o Eufrates, seguiram até Bactria (com o lendário Balkh como capital) via Khorasan, cruzaram as montanhas Tian Shan, chegaram ao Turquestão chinês, depois atravessaram o corredor de Gansu e o deserto de Gobi até Chang’an.  

Desde o lendário Guia Geográfico de Claudius Ptolomeu, a caravana de Maes Titianus é reconhecida como a única fonte da Antiguidade Clássica que descreve completamente o principal corredor terrestre da Rota da Seda Antiga desde a Síria Romana até a capital chinesa.  

Uma super-auto-estrada Roma-Xian?

É crucial notar que Bactria, no atual norte do Afeganistão, na época eram as conhecidas fronteiras orientais do mundo, de acordo com os romanos. Mas Bactria era muito mais do que isso; a principal encruzilhada comercial entre a China, a Índia, os Partos e Pérsia, e o império romano.

As montanhas Pamir – o “teto do mundo” – e o deserto Taklamakan (“você pode entrar mas não vai sair”, diz o ditado Uighur) foram durante séculos as maiores barreiras naturais para o Ocidente chegar à China.

Assim, foi a geologia que manteve a China em esplêndido isolamento em relação ao império romano e ao Ocidente. Em termos militares, os romanos e depois os bizantinos nunca conseguiram atravessar esta fronteira oriental que os separava dos persas. Assim, eles nunca conseguiram avançar suas conquistas até a Ásia Central e a China, como Alexandre famosamente tentou.

No entanto, os árabes, durante a expansão relâmpago do Islã, realmente conseguiram. Mas essa é outra – e longa – história. 

A aventura da caravana de Maes Titianus aconteceu nada menos que mais de um milênio antes das viagens de Marco Polo. No entanto, Polo tinha relações públicas muito mais sofisticadas – e essa é a narrativa impressa nos livros de história ocidental.

Evocá-la agora é um lembrete dos primeiros passos das Rotas da Seda Antigas, e como a interconexão permanece impressa no inconsciente coletivo de grandes partes da Eurásia. Os povos ao longo das rotas instintivamente entendem porque um corredor comercial em evolução unindo China-Paquistão-Afeganistão-Irã-Mediterrâneo Oriental faz total sentido.  

O Primeiro Ministro caído de paraquedas Mario “Goldman Sachs” Draghi pode insistir que a Itália é atlanticista, e pode estar constantemente zombando da ICR. Mas herdeiros perspicazes do Império Romano veem que as parcerias comerciais ao longo dos corredores da Nova Rota da Seda fazem tanto sentido quanto durante a época de Maes Titianus.  

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Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

Originalmente em Asia Times

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