Pepe Escobar: Para inteligência paquistanesa, islã dos talibãs é socialista e terá um governo a favor do povo. Diálogos do Sul, 26 de Agosto de 2021.

 


“O objetivo é usar o Afeganistão para lavar dinheiro e trazer o dinheiro de volta para as mãos de uma elite de segurança transnacional", disse Assange

PEPE ESCOBAR

Paris (França)

Depois de 20 anos e do espantoso gasto de US$2,23 trilhões numa “guerra sem fim” persistentemente divulgada como ação para promover democracia e beneficiar o “povo afegão”, é legítimo perguntar o que o Império do Caos teria a exibir como realização sua.

Os números são terríveis. O Afeganistão continua a ser a sétima nação mais pobre do mundo: 47% da população vive abaixo da linha de pobreza, segundo o Banco Asiático de Desenvolvimento. Nada menos de 75% do — detonado — orçamento do governo de Cabul vinha de ajuda internacional. Segundo o Banco Mundial, essa ajuda foi responsável pelo funcionamento de 43% da economia — já envolvida em massiva corrupção do governo.


Nos termos do acordo Washington-Talibã assinado em Doha em fevereiro de 2020, os EUA devem continuar a financiar o Afeganistão durante e depois da retirada dos soldados norte-americanos.

Winkiemedia
A guerra no afeganistão durou mais de 20 anos

Agora, com a Queda de Cabul e o retorno iminente do Emirado Islâmico do Afeganistão, vai ficando claro que se servir de táticas soft de poder financeiro pode ser até mais mortal que mera ocupação pela OTAN.

Washington congelou $9,5 bilhões das reservas do Banco Central Afegão; e o Fundo Monetário Internacional cancelou empréstimos ao Afeganistão, incluindo $460 milhões que seriam parte de um programa de ajuda relacionada a medidas de alívio durante a pandemia de Covid-19.

Esses dólares pagam salários e importações do governo afegão. Sem esses dólares, o “povo afegão” sofrerá ainda mais — consequência direta de inevitável depreciação da moeda, que levará a aumento dos preços dos alimentos e a inflação.

 

Um evento clássico de “pegue o dinheiro e corra” foi corolário dessa tragédia econômica: o ex-presidente Ashraf Ghani fugiu do país, depois de, como foi divulgado, ter carregado $169 milhões em quatro carros, em espécie, dos quais $5 milhões ficaram na pista no aeroporto de Cabul.

Essa informação foi prestada por duas testemunhas: um dos guarda-costas do ex-presidente e o embaixador afegão no Tadjiquistão; Ghani negou qualquer responsabilidade no saque.

O avião de Ghani não recebeu autorização para pousar no Tadjiquistão nem no Uzbequistão, seguindo para Omã, até que Ghani conseguiu autorização para pousar nos Emirados Árabes Unidos — muito próximo de Dubai, uma das mecas globais de contrabando, lavagem de dinheiro, chantagem e extorsão.

Os Talibãs[2] já declararam que novo governo e novo quadro econômico e político só serão anunciados após as tropas da OTAN estarem definitivamente fora do país, mês que vem.

As complexas negociações para formar governo “inclusivo”, como o porta-voz dos talibãs têm prometido repetidas vezes, são conduzidas de fato, pelo lado não Talibã, por dois membros de um conselho de três: o ex-presidente Hamid Karzai e rival eterno de Ghani; e o líder do Alto Conselho para Reconciliação Nacional (ing. High Council for National Reconciliation, HCNR), Abdullah. O terceiro membro, que age nas sombras, é o senhor-da-guerra convertido a político e duas vezes primeiro-ministro Gulbuddin Hekmatyar.


Karzai e Abdullah, ambos muito experientes, são vistos como “aceitáveis” pelos norte-americanos, de modo que podem ajudar muito em termos de facilitar o reconhecimento oficial, pelo Ocidente, do Emirado Islâmico do Afeganistão; e a restauração do financiamento por instituição multilateral.

Mesmo assim há muitos problemas, inclusive o papel muito ativo de Khalil Haqqani, que lidera a Comissão do Conselho de Paz dos Talibã, ao mesmo tempo em que está numa lista de “vigilância antiterror” e sob sanções da ONU. Haqqani não está encarregado apenas da segurança de Cabul; está também lado a lado com Karzai e Abdullah na discussão para formar um governo inclusivo.

O que faz funcionar os talibãs

Os talibãs já há duas décadas operam por fora do sistema bancário ocidental. Parte essencial de sua renda vem de impostos e pedágios cobrados em vias comerciais (por exemplo, do Irã) e taxas sobre o petróleo. Lucros das exportações de ópio e heroína (o consumo doméstico não é permitido), pelo que se sabe, correspondem a menos de 10% da renda do grupo.

Em número incontável de vilas em todo o interior profundo do Afeganistão, a economia gira em torno de pequenas transações em dinheiro e trocas.

Recebi cópia de documento da inteligência paquistanesa de alto nível, no qual se examinam os desafios que crescem à frente do governo afegão.

No documento observa-se que “a via padrão de desenvolvimento a ser seguida será muito pró-povo. O Islã dos talibãs é socialista. Têm aversão à riqueza concentrada em poucas mãos” — e, crucialmente, também têm aversão à usura.

Quanto aos passos iniciais rumo a projetos de desenvolvimento, o documento espera que venham de empresas russas, chinesas, turcas, iranianas e paquistanesas — bem como de uns poucos setores governamentais. O Emirado Islâmico “espera pacotes para desenvolvimento da infraestrutura” a custos que sejam “pagáveis nos limites do PIB atualmente existente.”

O PIB nominal do Afeganistão em 2020 foi de $19,8 bilhões, segundo dados do Banco Mundial.


São esperados novos pacotes de ajuda e de investimento vindos de nações-membros da Organização de Cooperação de Xangai (Rússia, China, Paquistão) ou observadores da mesma OCX (Turquia e atualmente o Irã — que deve ser convertido em membro pleno na reunião de cúpula da OCX prevista para o próximo mês, no Tadjiquistão ). Inserida aí está a noção de que o reconhecimento ocidental será tarefa de Sísifo.

O documento admite que os talibãs não tiveram tempo para avaliar o quanto a economia será o vetor chave que decidirá a futura independência do Afeganistão.

Mas esse trecho daquele documento pode trazer a chave: 

“Nas consultas com os chineses, foram aconselhados a ir com calma e a não agitar o bote do sistema mundial ocidental com conversas muito imediatas sobre controle estatal sobre o capitalismo, economia sem juros e descolamento do sistema financeiro baseado no FMI. Seja como for, dado que o Ocidente congelou todos os fundos do erário afegão, o Afeganistão provavelmente recorrerá a pacotes e ajudas de curto prazo contra a própria base de recursos.”

FMI-OTAN, irmãos em armas

Perguntei a Michael Hudson, professor de Economia na Universidade de Kansas City e da Universidade de Pequim, como ele recomendaria que o novo governo agisse. A resposta: “Para começar, impeçam, seja como for, que o FMI aja como braço da OTAN.”

Hudson referia-se a um artigo publicado no Wall Street Journal, assinado por um ex-conselheiro do FMI, atualmente operante no Atlantic Council, no qual se lia que “agora, dado que o reconhecimento está congelado, bancos em todo o planeta hesitarão, antes de negociar com Cabul. Esse movimento garante alavancagem aos EUA para negociarem com os talibãs.”

Implica que a coisa pode estar tomando o rumo do que foi feito à Venezuela — com FMI não “reconhecendo” um novo governo por meses, até anos. E quanto ao congelamento do ouro afegão, por obra do New York Fed — na verdade, por um grupo de bancos privados —, vemos ecos do saque do ouro líbio e da ‘apropriação’ do ouro venezuelano.

Para Hudson, tudo que aí se lê é “abuso do sistema monetário internacional — que se apresenta como se fosse de utilidade pública —, atuando como braço da OTAN controlado pelos EUA. O comportamento do FMI, especialmente no que tenha a ver com os novos Direitos Especiais de Saque (ing. drawing rights[3]), deve ser visto como o teste crucial para aferir a viabilidade de um Afeganistão governado pelos talibãs.

Hudson trabalha atualmente num livro sobre o colapso da antiguidade. Sua pesquisa levou-o a encontrar Cícero, em In Favor of the Manilian Law (latim, Pro Lege Manilia; interessante, em port. de Portugal, aqui; e também aqui, fonte, em esp.[4]), escrevendo sobre a campanha militar de Pompeu na Ásia e seus efeitos sobre as províncias, numa passagem que se aplica perfeitamente à “guerra sem fim” no Afeganistão: 

“Não há palavras que expressem, senhores, o quanto somos amargamente odiados por outras nações, por efeito da conduta irresponsável e ultrajante dos homens que enviamos para governá-las. Porque naqueles países, quais templos creem os senhores que teriam sido respeitados? Que estado teria talvez sobrevivido sem ser violado? Que lar teria talvez sido suficientemente protegido pelas próprias portas fechadas? Porque [nossos enviados] nada fazem além de procurar cidades ricas e prósperas para atacá-las e criar uma guerra, para na guerra satisfazerem a própria ânsia por saque e roubo.”

Trocando os clássicos por nível mais pedestre, WikiLeaks está reapresentando uma espécie de Afeganistão Greatest Hits, fazendo a opinião pública lembrar, por exemplo, que mesmo lá, naquele distante 2008, já não havia “data para acabar”, e a guerra já era dita “guerra sem fim”.

E a avaliação mais concisa pode ter partido pessoalmente do próprio Julian Assange:

“O objetivo é usar o Afeganistão para lavar dinheiro bem longe dos padrões tributários de EUA e Europa, e trazer o dinheiro assim ‘limpo’ de volta para as mãos de uma elite de segurança transnacional. A meta não é conseguir alguma guerra bem-sucedida. A meta é guerra sem fim.”

A “guerra sem fim” pode ser sempre desastre para o “povo afegão”, bombardeado, invadido e tornado povo de miseráveis, mas foi sucesso sem limites para o que Ray McGovern define com perfeição, como o Complexo MICIMATT (Militar-Industrial-Contrainteligência-Mídia-Academia-Think Tanks). Quem comprou ações de Lockheed Martin, Northrop Grumman, Raytheon e o resto dessa gente fez aquisição — literalmente — “matadora”.

Os fatos são sempre terríveis. Barack Obama — que comandou aquela horrenda sinistra “lista de matar” afegãos — faz festa de aniversário e convida todos os novos-ricos woke.[5] Julian Assange sofre tortura psicológica, preso em Belmarsh. E Ashraf Ghani dá tratos à bola para conseguir gastar $169 milhões com as gangues de Dubai, fundos que, há quem diga, teriam sido subtraídos do “povo afegão”.

Notas

[1] “Do afegâni ao zlóti”, Paulo Correia; Susana Gonçalves Direção-Geral da Tradução — Comissão Europeia Grupo Interinstitucional de Terminologia Portuguesa — Bruxelas [NTs].

[2] Talibã (transliteração do pachtun): “estudantes”, “pesquisadores”; plural de talib, “estudante”. Faz referência aos fundadores, a maioria dos quais eram estudiosos do Islamismo, formados em escolas islamistas tradicionais (aqui, em ing.).

[3] Ing. Special drawing rights (SDRs) (Port. “Direitos Especiais de Saque” (Wikipedia, port.); “moedas de reserva” [NTs].

[4] Interessante, para os tempos que correm, em português, Cícero, Pequeno Manual de Campanha Eleitoral, aqui [NTs].

[5] Woke é palavra que tem significado político, muito mais do que significado ‘de dicionário’. Assim sendo, é palavra sem tradução ao português e, de fato, sem tradução fácil para uma infinidade de línguas. Pode ser traduzida como o particípio passado do verbo (ing.) to wake; em port. “despertar”, com particípio passado “desperto”, “acordado”. Com alguma licença poética, pode ser traduzido até como “movimento dos [únicos] que sabem” ou “movimento dos [únicos] que veem”. Nesse sentido, porque dá nome a um movimento pressuposto único sacrossanto e correto, “woke” é expressão fascistizante.

Pode-se até ficar só nisso, por enquanto, para demarcar algumas das dificuldades para traduzir a expressão woke moviment. Mas aos poucos – se insistirmos – vamos nos aproximando de um conceito prestável. Com o que se aprende aí, acima, temos hoje, no conceito de “woke”, em construção: 

– É “woke”, dentre outras gangues de ricos, também toda a gangue de ‘democratas’ de salão, os filhinhos-de-papai-de-Harvard, ‘a elite’ do Partido Democrata dos EUA, que faz discurso pró ‘feministas’ [de Harvard] e, ao mesmo tempo, joga todos os pobres no que chama de “cesta de deploráveis”, feito Killary; ou que enche a própria mansão em festa de aniversário de arrombam em plena pandemia, como Obama, com celebridades autodeclaradas democráticas & politicamente corretas, depois de, durante anos, ter manejado aquelas sinistras ‘listas de matar’ afegãos [NTs].


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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